O desafio das arbitragens de múltiplos contratos no Brasil
Um exame do tema à luz dos Regulamentos de Câmaras Arbitrais em funcionamento no Brasil [1]
Júlio Cesar Costa Ferro[2]
Theo Silvério de Oliveira[3]
- Introdução
O desenvolvimento prático do instituto da arbitragem traz consigo a constante corrida das câmaras arbitrais em adequar seus regulamentos para permitir a escorreita condução dos procedimentos. Prova de tal tendência é a constante reestruturação dos regulamentos[4] face às novas necessidades que modificam a prática arbitral, tendo grande parte das instituições nacionais reeditado suas respectivas normas nos últimos cinco anos[5].
Ganhou popularidade, nos últimos anos, o debate sobre litígios complexos e sofisticados, bem como suas repercussões na arbitragem. Nesse contexto, este artigo visa a analisar a possibilidade de se solucionar disputas decorrentes de múltiplos contratos em um único procedimento arbitral.
Observa-se que, aqui, não se consideram “múltiplos contratos” exclusivamente sob uma visão material de conexão ou coligação, mas, sim, de modo a abranger o viés processual no qual o julgamento conjunto de disputas decorrentes de diferentes contratos, por um mesmo árbitro ou corpo de árbitros, seja interessante para a adequada solução de uma ou mais controvérsias.
A submissão de litígios oriundos de contratos múltiplos à arbitragem também não se confunde com a arbitragem coletiva, pois este visa tutelar pleitos oriundos de diferentes negócios jurídicos, não sendo o meio para a tutela de direitos individuais homogêneos. São essas, portanto, as premissas a partir das quais este texto é desenvolvido.
Para fins do presente artigo, foram analisados os seguintes regulamentos: Regulamento de Arbitragem da CAMARB (2019); Regulamento de Arbitragem FGV (2016); Regulamento de Arbitragem AMCHAM (2023); Regulamento de Arbitragem ARBITAC (2021); Regulamento de Arbitragem CIESP/FIESP (2013); Regulamento de Arbitragem Câmara do Mercado (2011); Regulamento de Arbitragem CBMA (2013); e Regulamento de Arbitragem CAMERS.
- Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC: a possibilidade de arbitragens de múltiplos contratos
O Regulamento de Arbitragem do Centro de A rbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (“CAM-CCBC”), editado em 2022, inovou, dentre os regulamentos brasileiros, ao abranger, em seu artigo 20, disposições sobre a arbitragem de múltiplos contratos. Em seu artigo 20.1, dispõe que “as partes poderão deduzir demandas oriundas ou relacionadas a mais de um contrato, em um único processo arbitral”. Assim, para viabilizar a tramitação de tais disputas em um único procedimento, o art. 20.3 estabelece esses requisitos: “(a) as convenções de arbitragem forem compatíveis entre si; (b) os pedidos tiverem origem no mesmo negócio jurídico ou série de negócios jurídicos; e (c) não houver impacto significativo à eficiência e celeridade do processo”.
Parece-nos que o Regulamento do CAM-CCBC foi assertivo. A uma, porque a compatibilidade de convenções de arbitragem é requisito indispensável. Sua não observância pode afetar princípios basilares de contraditório e ampla defesa, além de comprometer a validade de futura sentença arbitral. A duas, porque o Regulamento adotou postura mais permissiva de conexão, não exigindo que os contratos tenham origem no mesmo negócio jurídico, mas, sim, que a sua gênese decorra da mesma “série de negócios jurídicos”. E, a três, porque, ao ressaltar o adjetivo “significativo” no item (c) de seu art. 20.3, o Regulamento especificou que a objeção ao prosseguimento de demandas relacionadas a mais de um contrato não pode ser embasado exclusivamente no mero acréscimo temporal. Consequentemente, o julgamento conjunto não será impossibilitado apenas com base na celeridade, sendo aceitável e esperado que, para a outorga de uma tutela adequada, tenha-se um impacto na duração da disputa.
Em síntese, de acordo com o Regulamento da CAM-CCBC, é possível que o mesmo tribunal dirima, em uma única arbitragem, conflitos oriundos de uma cadeia de negócios, ainda que não tenham o mesmo objeto. A praxe mostra que, ainda que não coligados, os diversos negócios jurídicos celebrados entre as mesmas partes impactam um ao outro, seja para forçar posição negocial vantajosa, seja para celebrar acordos “compensatórios”. Portanto, é evidente que, em alguns destes casos, pode ser conveniente que as controvérsias sejam julgadas conjuntamente.
- Arbitragens de múltiplos contratos e sua viabilidade perante o silêncio regulamentar
Diferentemente do Regulamento da CAM-CCBC, os regulamentos de arbitragem das demais instituições analisadas são silentes quanto à possibilidade de arbitragens de múltiplos contratos. A partir da omissão destes regulamentos, surgem questões sobre a possibilidade da arbitragem de múltiplos contratos. Ante tal cenário, Bernard Hanotiau afirma que se levantam dúvidas sobre a adequabilidade de se instaurarem procedimentos arbitrais distintos e depois consolidá-los – bem como sobre qual deve ser o grau de conexão entre os contratos para ser possível tal manobra[6].
Defende-se, aqui, a possibilidade de arbitragens de múltiplos contratos em procedimentos arbitrais regidos por normas processuais silentes sobre a temática, amparando-se nos princípios da adequada tutela jurisdicional, da eficiência processual e da celeridade[7]. Diante da concordância das partes, não restam dúvidas sobre a possibilidade de julgamento conjunto, ainda mais considerando a ampla liberdade a elas conferida[8]. No entanto, nos casos de discordância, deve-se, primeiramente, proceder à análise da compatibilidade das cláusulas compromissórias[9]. E, após tal análise, a instituição e/ou o Tribunal Arbitral pode se valer, ainda que por analogia, das regras de consolidação para decidir sobre a possibilidade de julgamento conjunto das disputas decorrentes de múltiplos contratos[10].
Entretanto, mais do que tudo, na ausência de regramento específico, deve a instituição ou o Tribunal Arbitral analisar a adequabilidade concreta da medida. Em muitos cenários, o julgamento conjunto, além de propiciar decisões coesas, permite maior eficiência na produção técnico-documental (vedando sua produção em duplicidade)[11]. De todo modo, a viabilidade de arbitragens de múltiplos contratos requer análise casuística, amparada em princípios basilares da arbitragem (i.e., a autonomia das partes, a celeridade e a eficiência processual).
- Considerações finais
Em conclusão, a possibilidade de arbitragens de múltiplos contratos pode ser uma ferramenta valiosa para lidar com litígios complexos e sofisticados, naturais do desenvolvimento da praxe arbitral. Quando apropriado, concentrar pleitos oriundos de distintos contratos em um único procedimento pode aumentar a eficiência e celeridade do processo, além de reduzir significativamente os custos e evitar decisões conflitantes. No entanto, é importante lembrar que essa prática deve, ainda que diante de regulamentos que a disciplinem, ser implementada com cuidado casuístico para garantir a higidez da sentença arbitral e a adequada tutela jurisdicional às disputas sub judice.
[1] Este texto representa o entendimento pessoal dos autores sobre o tema em discussão. As opiniões e os posicionamentos adotados não representam o entendimento de quaisquer instituições que façam parte.
[2] Advogado em São Paulo. Mestre em direito comercial pela Universidade de São Paulo. Linkedin: https://www.linkedin.com/in/julioccferro/.
[3] Estudante de direito na Universidade Federal do Paraná. Linkedin: https://www.linkedin.com/in/theosilverio/ .
[4] Tal comportamento é observado nas câmaras arbitrais nacionais e internacionais: (i) o primeiro regulamento de arbitragem da Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá durou 14 anos, enquanto o segundo durou 10 anos; (ii) as revisões dos regulamentos de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, que, no início do século XX, ocorriam em média a cada 20 anos, passam, no século XIX, a ocorrer, aproximadamente, a cada quinquênio.
[5] Reeditaram o seu regulamento arbitral nos últimos cinco anos: AMCHAM (2023); ARBITAC (2021); CAMARB (2019); e CCBC (2022).
[6] HANOTIAU, Bernard. Problems Raised by Complex Arbitrations Involving Multiple Contracts-Parties-Issues – An Analysis. Journal of International Arbitration (Kluwer Law International; Kluwer Law International 2001, Volume 18 Issue 3, p. 253.
[7] Princípios, inclusive, previstos nos regulamentos de arbitragem em análise: Regulamento de Arbitragem do CBMA, 9.5; Regulamento de Arbitragem da AMCHAM, 10.2; Regulamento de Arbitragem da CAMARB, 10.6; Regulamento de Arbitragem da CCBC, 25.1; e Regulamento de Arbitragem da FGV, 48.
[8] Neste sentido: Regulamento de arbitragem da CAMARB, 6.1(c); Regulamento de Arbitragem da ARBITAC, 25(d); Regulamento de Arbitragem da CIESP/FIESP, 5.1; e Regulamento de Arbitragem da FGV, 28(c).
[9] Tratando sobre a questão de múltiplos contratos no cenário de contratos de franquias, Tatiana Dratovsky Sister e Thiago Del Pozzo Zanelato entendem pela necessidade de se incluir cláusulas arbitrais com disposições congruentes quanto à escolha da instituição arbitral, do número de árbitros, e da sede, de modo a facilitar a concentração das demandas no mesmo procedimento (SISTER, Tatiana e ZANELATO, Thiago. Nova Lei de Franquias e Arbitragem. Revista Brasileira de Arbitragem, 67ª. ed., 2020, p. 28).
[10] Pedro A. Batista Martins, ao tratar dos requisitos da consolidação, entende ser necessário a adequabilidade de “(i) partes, (ii) cláusula compromissória, (iii) câmara de arbitragem, (iv) regimento de custas, (v) idioma, (vi) lei aplicável, e/ou (vii) regra procedimental, hipóteses que implicam maiores preocupações e cuja complexidade impõe aprofundado exame que pode levar a uma natural restrição à sua implementação”. (MARTINS, Pedro A. Batista. Parecer: consolidação de arbitragens. Disponível em: http://batistamartins.com/parecer-consolidacao-de-arbitragens/. Acesso em 18.04.2023).
[11] BARRET, Stephanie. Multi-contract disputes and arbitration: minimising time and costs. Thomson Reuters: Practial Law Aribtration Blog, 2021. Disponível em: http://arbitrationblog.practicallaw.com/multi-contract-disputes-and-arbitration-minimising-time-and-costs/. Acesso em: 21.04.2023.