Arbitragem e o caso das sentenças arbitrais que ofendem a ordem pública: um comparativo entre o Brasil e a França

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Julia Thedy[1]

Lara Fernanda Yokota[2]

A interação entre atos ilícitos, como corrupção, lavagem de dinheiro e fraude,      e a arbitragem não é uma temática      nova. Entretanto, uma evolução pode ser observada na abordagem conferida pelos tribunais estatais às sentenças arbitrais que violam a ordem pública[3] por motivos atrelados a tais atos ilícitos. Neste contexto, este breve artigo de opinião visa traçar um comparativo entre os tratamentos conferidos pelos tribunais franceses e brasileiros ao controle das sentenças arbitrais em relação à ordem pública.

No que se refere ao direito francês, é impossível não mencionar o caso Belokon. Tratou-se, na espécie, de uma arbitragem de investimento com sede em Paris (França) e fundada no Tratado Bilateral de Investimento celebrado entre o Quirguistão e a Letônia. Em demanda de anulação da sentença arbitral, a Cour d’Appel de Paris (corte de apelação de Paris, França) reconheceu[4] que cabia às cortes estatais analisar se o reconhecimento ou o exequatur[5] da sentença violaria o conceito francês de ordem pública internacional, não estando a apreciação das cortes limitada às conclusões do tribunal arbitral nem às provas apresentadas pelas partes durante a arbitragem. Em 23 de março de 2022, a Cour de Cassation (tribunal superior francês) confirmou[6] a decisão da Cour d’Appel de Paris. Em sua decisão, o tribunal superior francês indicou que a análise executada pelos tribunais nacionais não constitui uma revisão do mérito da sentença, e sim uma reanálise dos fatos no intuito de identificar se o reconhecimento ou o exequatur da sentença violaria ou não a ordem pública internacional francesa.

As decisões do caso Belokon evidenciam a transição da abordagem feita pelos tribunais franceses. Salvas algumas exceções[7], a abordagem dita ‘minimalista‘ adotada em um primeiro momento se limitava ao entendimento dos casos Thalès[8] e Cytec[9], consoante o qual caberia aos tribunais nacionais averiguar apenas a compatibilidade do teor da sentença arbitral à noção francesa de ordem pública internacional. Mais recentemente, os tribunais nacionais franceses têm reconhecido a possibilidade da reanálise dos fatos do caso, incluindo a oposição de novos argumentos[10] e a submissão de novos elementos de prova[11] pelas partes, para determinar se o reconhecimento ou exequatur da sentença arbitral violaria a ordem pública internacional no sentido de permitir que uma das partes se beneficie dos frutos de atos ilícitos.No direito brasileiro, o tema das sentenças arbitrais que violam a ordem pública nacional não parece ser objeto, por ora, de calorosos debates. Para gozar de executoriedade no Brasil, as sentenças arbitrais estrangeiras devem ser objeto de homologação perante o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) nos termos do art. 35 da Lei n°9.307/1996 (“Lei de Arbitragem”). Se, em regra, o controle exercido pelo STJ no procedimento de homologação é superficial e limitado, havendo alegações de ofensa à ordem pública nacional reconhece-se ao STJ ampla liberdade no controle da decisão estrangeira. Nesse sentido, não parece haver obstáculos a que o STJ reanalise os fatos do caso, no intuito de verificar a configuração de eventuais ofensas à ordem pública nacional.[12]

Uma das particularidades da arbitragem no direito brasileiro diz respeito à ausência de controle a priori das sentenças proferidas em arbitragens nacionais. Antes de adentrar nessa questão, entretanto, cumpre realizar um breve parêntesis explicativo: diferentemente da abordagem adotada pela Lei de Arbitragem, a qual determina o caráter estrangeiro da sentença arbitral com base no local onde a sentença foi proferida[13], na França, são consideradas internacionais as arbitragens que discutem questões que interessam ao comércio internacional.[14] No direito francês, independentemente do caráter nacional ou internacional da arbitragem, a executoriedade da sentença arbitral estará sempre sujeita ao exequatur[15], o qual, ainda que constitua um controle superficial, requer a conformidade da sentença à ordem pública.[16]

Comparativamente, no direito brasileiro, o controle realizado às sentenças arbitrais nacionais tende a se limitar às ações de declaração de nulidade e de impugnação ao cumprimento da sentença arbitral, as quais – como se denota pela redação do artigo 32 da Lei de Arbitragem –      não englobam a hipótese de violação à ordem pública nacional. Embora não se esteja –      nem de longe –      a criticar a confiança depositada pelo ordenamento jurídico      brasileiro ao instituto da arbitragem por meio da exclusão de um controle antecedente,      é de se questionar se não haveria remédios à sentença arbitral proferida em território nacional que, a exemplo      do caso Belokon, permitisse a um indivíduo beneficiar-se dos frutos de lavagem de dinheiro.

[1]        Advogada, Herbert Smith Freehills Paris LLP.

[2]        Advogada, Toledo Marchetti Advogados.

[3]        Segundo DOLINGER Jacob; TIBURCIO Carmen, Direito internacional privado: parte geral, 12. ed. rev., atual. e ampl, Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 442: “Diríamos que o princípio da ordem pública é o reflexo da filosofia socio-político-jurídica imanente no sistema jurídico estatal, que ele representa a moral básica de uma nação e que protege as necessidades econômicas do Estado”.

[4]        FRANÇA, Paris, 21 de fevereiro de 2017, n° 15/01650, République du Kirghizistan c/ M. Belokon.

[5]        Em direito francês, o exequatur pode ser compreendido como o procedimento por meio do qual uma sentença estrangeira passa a integrar o ordenamento jurídico nacional, podendo, em seguida, ser executada. Nas palavras de EL AHDAB Jalal e MAINGUY Daniel, Droit de l’Arbitrage théorie et pratique, Paris : LexisNexis, 2021, p. 969-970: “La technique de l’exequatur permet d’obtenir cette force exécutoire, sous la réserve d’un contrôle judiciaire préalable exercé par le juge étatique compétent  pour la prononcer. Ainsi, l’exequatur permet de compléter la sentence en lui assurant la force exécutoire qui lui défaut, liée à l’absence d’imperium de la sentence arbitrale “.

[6]        FRANÇA, Cass. 1 Ch. Civ., 23 de março de 2022, n° 17-17981, République du Kirghizistan c/ M. Belokon.

[7]        FRANÇA, Paris, 1 Ch. Civ., 30 de setembro de 1993, Soc. European Gas Turbines SA c/ Soc. Westman.

[8]        FRANÇA, Paris, 1 Ch. Civ., 18 de novembro de 2004, Thalès Air défence c/ GIE Euromissile.

[9]        FRANÇA, Cas., 1 Ch. Civ., 4 de junho de 2008, Société SNF c/ Société Cytec Industries BV.

[10]      FRANÇA, Paris, 25 de maio de 2021, Webcor ITP Limited, Grand Marché de Libreville c/ la Commune de Libreville et la République Gabonaise; FRANÇA, Cass., 1 Ch. Civ., 7 de setembro de 2022, n° 20-22.118, Sorelec c/ Libya.

[11]      FRANÇA, Paris, 21 de fevereiro de 2017, n° 15/01650, République du Kirghizistan c/ M. Belokon; FRANÇA, Paris, 5 de abril de 2022, n° 20/03242, Santullo Sericom c/ Gabon; FRANÇA, Cass., 1 Ch. Civ., 7 de setembro de 2022, n° 20-22.118, Sorelec c/ Libya.

[12]      Cf., por exemplo: BRASIL, STJ, SEC 9412-EX (2013/0278872-5). Requerente: ASA Bioenergy Holding A G e outros. Requerido: Adriano Giannetti Dedini Ometto e Adriano Ometto Agricola Ltda. Relator: Ministro Felix Fischer. DJe: 30 de maio de 2017.

[13]      Artigo 34, parágrafo único da Lei de Arbitragem.

[14]      Artigo 1504 do Código de Processo Civil francês.

[15]      Artigos 1487 e 1516 do Código de Processo Civil francês.

[16]      Artigos 1488 (referência à “ordre publique“) e 1514 (referência à “ordre public international“) do Código de Processo Civil francês.

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