A confidencialidade da arbitragem no Brasil
A Confidencialidade da Arbitragem no Brasil:
Recentes Decisões do E. TJSP Colocam em Xeque as Escolhas das Partes
Jessica Scott Banfield(1) e Eduardo Machado Tortorella(2)
São vários os motivos pelos quais as partes optam pela arbitragem, mas um em especial chama a atenção: a confidencialidade. Segundo levantamento realizado em 1992 pelo London Court of International Arbitration (LCIA) e pela London Business School(3), a confidencialidade era considerada um dos principais benefícios da arbitragem e continua sendo uma das vantagens mais demandadas ao se escolher pelo procedimento arbitral.
Embora não seja expressamente reconhecida na Lei de Arbitragem Brasileira (“LdA”), grande parte da doutrina, amparada na jurisprudência arbitral internacional, tem entendido que, independentemente do dever genérico de discrição do tribunal arbitral mencionado no art. 13, §6º da LdA, a confidencialidade está implícita, por natureza, na arbitragem podendo variar em intensidade e forma de acordo com a vontade das partes(4). Nesse sentido, ela pode ser ampla e abranger todos os aspectos do procedimento arbitral, ou pode ser limitada a determinados documentos e informações, ou ainda em relação à atuação de determinadas pessoas. Em geral, deve haver opção expressa pelas partes, seja em decorrência das regras das instituições arbitrais(5) ou em virtude das cláusulas contratuais pactuadas pelas Partes.
Embora a confidencialidade seja considerada um dos maiores benefícios da arbitragem(6), ela não é adotada de forma homogênea em nível global, e também possui diversos fatores limitantes. Por exemplo, no Brasil, o Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 189(7), estabelece uma regra geral para publicidade de todos os processos movidos perante tribunais estaduais. Este artigo também lista as poucas exceções à regra geral, em que os autos devem ser mantidos em sigilo, como é o caso das ações que envolvem arbitragem (art. 189, IV).
Uma discussão sobre a rigidez dessa regra de confidencialidade, no entanto, está em curso nas varas especializadas de São Paulo desde 2018. O primeiro caso em que essa questão foi registrada foi o processo nº 1058693-24.2018.8.26. 0100(8). A ação foi ajuizada para a produção antecipada de provas e, como o contrato continha cláusula compromissória, ambas as partes solicitaram que a questão fosse considerada sigilosa pela justiça estadual. O juiz indicou, na ocasião, que a mera existência de uma cláusula arbitral ou de confidencialidade no contrato não impunha automaticamente sigilo sobre as medidas judiciais preparatórias, uma vez que o artigo 189 do CPC não impôs expressamente a confidencialidade nessas circunstâncias. Esse entendimento vem se repetindo nas varas especializadas e aprofundado as discussões sobre a constitucionalidade do artigo 189, por restringir a regra geral da publicidade(9).
Nos últimos dois anos, duas decisões foram proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), elevando o nível da discussão e chamando atenção redobrada para o assunto.
Em 31 de março de 2020, foi proferido acórdão pela 1ª Câmara Empresarial do TJSP referente ao sigilo de processo de execução de sentença arbitral. O juiz de primeira instância havia indicado anteriormente que, embora a ação estivesse relacionada a um procedimento arbitral, não se aplicava o disposto no artigo 189, IV, do CPC, pois referido inciso violava a regra geral de publicidade prevista nos artigos 5º, LX(10), e 93, IX(11), da Constituição Federal Brasileira. Segundo o magistrado, a única exceção constitucional à regra seria quando a disputa envolvesse assuntos íntimos ou de interesse social. Quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº 2008533-16.2020.8.26.0000(12), o Desembargador Relator manteve o indeferimento do pedido de sigilo, indicando que o artigo 189 do CPC deveria ser interpretado de forma restritiva e aplicado apenas em casos verdadeiramente extraordinários como exceção à regra geral e constitucional da publicidade. Assim, uma vez que o artigo 189 do CPC não se refere expressamente aos procedimentos de execução de sentenças arbitrais, a situação não poderia ser considerada excepcional.
Quase um ano depois, em 2 de março de 2021, a mesma Câmara e o mesmo Desembargador Relator do TJSP proferiram outro acórdão sobre o tema. Desta vez, no entanto, o raciocínio por trás da negativa da confidencialidade alterou-se levemente. No julgamento do Agravo de Instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000(13), interposto contra decisão de primeira instância que negou sigilo à ação anulatória de sentença arbitral, o Magistrado destacou mais uma vez que a interpretação restritiva aplica-se contra o artigo 189 do CPC. No entanto, a conclusão não foi pela falta de referência às ações anulatórias no artigo, mas sim que ele era prejudicial ao sistema judiciário brasileiro, pois viola dispositivos constitucionais sobre publicidade. Assim, ao aplicar a exceção do artigo 189, IV, a simetria informacional seria prejudicada, pois somente os envolvidos no caso poderiam tomar conhecimento das conclusões e decisões prolatadas, em detrimento, segundo seu entendimento, do maior interesse social de segurança e previsibilidade nas decisões dos tribunais estaduais. Em outras palavras, ao conceder sigilo às ações envolvendo arbitragem, o ordenamento jurídico brasileiro não seria capaz de promover informações justas entre seus usuários e consolidar a jurisprudência sobre o assunto. Para tanto, o Desembargador Relator chegou a fazer um paralelo entre a publicidade e uma citação do Ministro Louis Brandeis, da Suprema Corte americana, que afirma que “a luz do sol é considerada o melhor dos desinfetantes”(14).
As recentes decisões da 1ª Câmara Empresarial do TJSP inovam em matéria que até pouco tempo não era discutida e ameaçam o que diversos empresários tinham como certeza e vantagem ao optar pela arbitragem. De fato, até 2018, não havia dúvidas de que a confidencialidade e a arbitragem mantinham uma relação amistosa e caminhavam de mãos dadas até mesmo nos tribunais estaduais, seja para a proteção de segredos comerciais, industriais, profissionais, seja para a proteção de informações e documentos que não podem ser amplamente divulgados.
Não é de se estranhar que tais decisões tenham chamado a atenção da comunidade arbitral e processual civil. Em agosto de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou entendimento informando que, se comprovada a confidencialidade do procedimento arbitral, os processos judiciais relativos àquela arbitragem também deverão ser mantidos em sigilo, nos termos do art. 189, IV, do CPC(15). Posteriormente, em setembro de 2021, o CNJ emitiu uma resolução sobre a cooperação judiciária em matéria de arbitragem (Resolução nº 421, de 29 de setembro de 2021)(16) e seu artigo 4º estabeleceu que “Desde que a confidencialidade do procedimento arbitral seja comprovada, os pedidos de cooperação judiciária entre juízos arbitrais e órgãos do Poder Judiciário deverão observar o segredo de justiça, na forma prevista no artigo 189, IV, do Código de Processo Civil, e no artigo 22-C, parágrafo único, da Lei de Arbitragem”.
Esses atos mais recentes demonstram como a confidencialidade é uma preocupação relevante ao se optar pela arbitragem, especialmente tendo em vista a falta de consenso entre os entes estatais sobre como a questão deve ser tratada.
(1) Advogada em Souto Correa Advogados.
(2) Mestre em Direito do Comércio Internacional pela Università Degli Studi Di Torino. Advogado em Lobo De Rizzo Advogados.
(3) LEE, João Bosco. O princípio da confidencialidade na Arbitragem Comercial Internacional. In: VALENÇA FILHO, Clávio de Melo e LEE, João Bosco. Estudos de Arbitragem. Curitiba: Juruá, 2008. p. 286.
(4) SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem em contratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 54-55: “A confidencialidade pode ter vários graus e, também, variavel extensão, dependendo da vontade das partes. Pode dizer respeito à própria existência da arbitragem, de seu resultado, de documentos ou informações especificadas e atuar em relação a determinadas pessoas, situações, entendidades ou instituições. Em geral, no entanto, esse atributo é genericamente relacionado aos procedimentos de arbitragem.”. No mesmo sentido, cf. também: BAPTISTA, Luiz Olavo. Arbitragem comercial e internacional. São Paulo: Lex Editora, 2011, p. 178; ou CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 220.
(5) Veja, por exemplo, o artigo 14 do Regulamento de Arbitragem da CAM-CCBC, disponível em: < https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/resolucao-de-disputas/arbitragem/regulamento-2012/ >. Acesso em: 07 de abril de 2022.
(6) ARROYO, Diego P. Fernández. Los Dilemas del Estado frente al Arbitraje Comercial Internacional. In: Revista Brasileira de Arbitragem, ed. nº 05. São Paulo: Editora Síntese e Comitê Brasileiro de Arbitragem. 2005. pp. 122-123.
(7) Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (…) IV – que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.”. BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (2015). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm >. Acesso em: 07 de abril de 2022.
(8) São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: < https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S000VINA0000&processo.foro=100&processo.numero=1058693-24.2018.8.26.0100&uuidCaptcha=sajcaptcha_d657150460fa43248a9b8a6ddf2f7084 >. Acesso em: 07 de abril de 2020.
(9) Nesse sentido, veja as decisões proferidas em 10 de junho de 2020, no processo nº 1039147-12.2020.8.26.0100, e em 24 de junho de 2020, no processo nº 1047292-94.2019.8.26.0002, ambos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
(10) “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; (…)”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 07 de abril de 2022.
(11) “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (…) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”
(12) São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2008533-16.2020.8.26.0000. Relator(a): Cesar Ciampolini. São Paulo, 31 de março de 2020. Disponível em: < http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=13444272&cdForo=0 >. Acesso em: 07 de abril de 2020.
(13) São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2263639-76.2020.8.26.0000. Relator(a): Cesar Ciampolini. São Paulo, 02 de março de 2021. Disponível em: < http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=14414534&cdForo=0 >. Acesso em: 07 de abril de 2022.
(14) Tradução livre de: “sunlight is said to be the best of disinfectants”.
(15) II Jornada Prevenção e solução extrajudicial de litígios: Enunciados Aprovados. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2021. p. 12: “ENUNCIADO 99 da “O art. 189, IV, do Código de Processo Civil é constitucional, devendo o juiz decretar segredo de justiça em processos judiciais que versem sobre arbitragem, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo”.
(16) CNJ. Resolução 259/2021 sobre diretrizes e procedimentos sobre a cooperação judiciaria nacional em matéria de arbitragem. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/192672/2021_res0421_cnj.pdf?sequence=1&isAllowed=y >. Acesso em: 07 de abril de 2022.