A possibilidade de extensão da cláusula compromissória em caso de coligação contratual

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Breves considerações sobre a possibilidade de extensão objetiva da cláusula compromissória em caso de coligação contratual

Gabriela Moreira Cicillini[1]

 

Introdução

Tratando-se de direitos disponíveis, o ordenamento jurídico brasileiro prevê métodos alternativos de resolução de disputas. Dentre eles destaca-se a arbitragem que, caracterizada por sua natureza consensual, consiste na submissão do conflito a terceiro(s) escolhido(s) pelas partes.

A complexidade das relações comerciais somada à larga utilização da via arbitral neste âmbito fez surgir algumas problemáticas, como a possibilidade da extensão objetiva da cláusula compromissória quando há contratos coligados e ao menos um deles prevê a arbitragem como meio de resolução de disputas. Destarte, por meio de pesquisas bibliográficas e documentais, o presente artigo visa examinar sucintamente como a questão é tratada pela principal doutrina sobre o tema e pela jurisprudência brasileira.

  1. Cláusula compromissória: aspectos gerais 

A cláusula compromissória ou arbitral é a disposição contratual na qual as partes se comprometem a submeter futuras controvérsias à arbitragem[2]. Desde a conclusão do negócio jurídico, momento em que a cláusula é pactuada, afasta-se a jurisdição do Poder Judiciário.

Caracterizada por sua autonomia, a cláusula compromissória encontra-se dissociada do contrato em que está inserida ou relacionada, não sendo necessariamente atingida pelos vícios do negócio a que se refere[3], o que assegura a eficácia do procedimento arbitral, já que, conforme explica Francisco Cahali, se perfeita a cláusula arbitral, íntegra esta manter-se-á, preservando-se a vontade dos contratantes em submeter os litígios, inclusive se referentes aos defeitos do contrato, à arbitragem[4] .

A cláusula arbitral se reveste da estrutura de um negócio jurídico típico. Assim, é fundamental o consentimento livre e inequívoco das partes em aderi-la. Ademais, pelo princípio da relatividade, sua incidência recai somente sobre aqueles diretamente envolvidos em sua pactuação.

A Lei Brasileira de Arbitragem estabelece que a cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito[5], o que enseja discussão doutrinária: enquanto alguns reputam necessário que ela seja escrita e o contrato assinado, ou que ao menos ela seja inequivocamente aceita em documento apartado, outros consideram que sua previsão denota um requisito ad probationem.      Logo, valoriza-se a demonstração da vontade em si, que pode ocorrer mediante diversos elementos[6], ou seja, deve privilegiar-se a real intenção das partes e não necessariamente o teor gramatical do ato.[7]

Pelo exposto, quanto à cláusula compromissória temos que: (i) sua interpretação deverá abranger tão somente à cláusula, ou seja, deve-se desconsiderar eventuais vícios do instrumento em que ela está inserida, em vista do princípio da autonomia; (ii) a cláusula produz efeitos somente contra àqueles diretamente envolvidos na sua pactuação, pelo princípio da relatividade; e (iii) a cláusula está reduzida à anuência mútua das partes.

  1. Contratos coligados e a extensão objetiva da cláusula arbitral 

2.1. A coligação contratual

No âmbito empresarial, devido à complexidade e plurilateralidade das relações socioeconômicas, para abranger todos os interesses das partes, comumente celebra-se diversos contratos para regular determinada operação econômica[8]. Tais contratos, por apresentarem uma mesma finalidade econômica, detêm uma relação de dependência entre si, seja pela acessoriedade, pela disposição contratual ou pelo seu conteúdo em si[9]. Denomina-se esta vinculação de coligação contratual, cuja teoria ainda está em desenvolvimento no Brasil.

Malgrado os contratos coligados disciplinem a operação econômica, eles não se reduzem a ela. Portanto, mesmo interligados pelo objetivo comum ulterior que visam alcançar, tais contratos possuem certa autonomia[10], caracterizados por suas estruturas individualizadas.

Sendo assim, tais relações contratuais não podem ser analisadas como um negócio jurídico único, mas também não podem ser examinadas como negócios isolados, dado o escopo comum. Em razão disso, se prevista a arbitragem e constatada a coligação contratual, discute-se a extensão objetiva da cláusula compromissória.

2.2. A Extensão Objetiva da Cláusula Compromissória.

A extensão objetiva da cláusula compromissória consiste na possibilidade de a cláusula produzir efeitos para além do contrato em que está inserida, atingindo outros instrumentos[11].  Para Bernard Hanotiau, a principal problemática é determinar se o conjunto contratual compõe um todo indivisível ou não. Nessa linha, a obra Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, referência no tema, analisa as situações que podem surgir.

A primeira é a inserção de cláusula compromissória no contrato principal e sua referência expressa nos demais. Sendo evidente a intenção das partes em submeter as futuras controvérsias decorrentes do grupo contratual à arbitragem, perante um único tribunal arbitral constituído em concordância com o contrato principal, inexiste grande complexidade quanto a incidência da cláusula[12].

Em contrapartida, quando há uma cláusula compromissória para cada contrato, podem surgir adversidades, pois instaura-se a dúvida se, para decidir os litígios decorrentes de cada contrato, deveria ser constituído um único tribunal arbitral ou tribunais diferentes. No geral, entende-se que a solução reside na interpretação da intenção das partes. Caso as cláusulas arbitrais sejam idênticas, é legítimo presumir que as partes desejam submeter todas as controvérsias decorrentes dos contratos coligados a um único tribunal arbitral[13].

A problemática se agrava quando as cláusulas compromissórias variam de contrato para contrato. Para Gary Born, nesses casos há fortes indícios que a cláusula de um contrato não pode abarcar o outro, ainda que coligados[14]. Assim, Emmanuel Gaillard conclui:

Somente quando ambas as arbitragens ocorrerem em uma jurisdição na qual os tribunais tenham o direito de consolidar as ações relacionadas […] ou quando dois procedimentos se referirem às mesmas regras de arbitragem que permitem a consolidação, será possível evitar as dificuldades associadas à existência de tribunais arbitrais separados sem que seja explorada real intenção das partes.[15]

Por fim, quando alguns contratos dispõem de cláusula compromissória, mas o mesmo método de resolução de litígios não é previsto nos demais instrumentos a eles coligados, discute-se a possibilidade de um tribunal arbitral, constituído em concordância com parte dos instrumentos, solucionar as controvérsias decorrentes dos demais, que não estipularam a cláusula, porém estão em coligação. Nesse caso, também se entende que a resposta reside na interpretação da intenção das partes. Caso as circunstâncias demonstrem – mesmo que implicitamente – a pretensão em submeter à arbitragem os litígios decorrentes do conjunto contratual, o tribunal terá jurisdição para julgá-los[16].

Ademais, quando há contratos intimamente conectados, onde um encontra sua origem no outro, ou então, um complementa ou implementa o outro, Hanotiau explica que a ausência da cláusula arbitral em um não evita que futuras controvérsias derivadas de ambos sejam submetidas à arbitragem e decididas conjuntamente[17].

Embora o tema seja controverso, atualmente, a doutrina inclina-se à flexibilização da interpretação da cláusula compromissória[18]. Quanto à jurisprudência brasileira, frisa-se que, em julgado recente, o Superior Tribunal de Justiça já admitiu a extensão objetiva da cláusula devido à inexistência de autonomia das obrigações ajustadas no contrato acessório em relação ao principal. Porém, dispôs que a coligação contratual pode – mas não necessariamente deve – ensejar a extensão da cláusula compromissória[19]. Logo, depende do caso concreto. Similarmente, no REsp 1.639.035/SP, entendeu-se pela extensão da cláusula visto a relação de acessoriedade entre o contrato de abertura de crédito e os contratos de swap firmados, nos seguintes termos:

2.3. No sistema de coligação contratual, o contrato reputado como sendo o principal determina as regras que deverão ser seguidas pelos demais instrumentos negociais que a este se ajustam, não sendo razoável que uma cláusula compromissória inserta naquele não tivesse seus efeitos estendidos aos demais.[20]

Desse modo, embora a jurisprudência brasileira nos tribunais superiores não seja vasta e consolidada, tende-se à extensão objetiva da cláusula arbitral em caso de coligação contratual.

Conclusão

Por relacionar-se diretamente com as circunstâncias do caso concreto, a temática ora retratada é densa e complexa. Pelo exposto, extraímos que, quando subsiste relação de acessoriedade entre contratos, é possível a ampliação da incidência da cláusula compromissória. Todavia, esse entendimento pode variar dependendo do caso concreto e tal perspectiva deve ser tratada com cuidado para que não seja generalizada a relação coligada, cuja teoria ainda está em desenvolvimento. Nota-se que a jurisprudência dos tribunais superiores sobre a extensão objetiva da cláusula compromissória em contratos coligados ainda é escassa e não consolidada. Logo, o tema ainda é delicado e precisa ser mais explorado pela doutrina e jurisprudência para que se pacifique

Referências

BRASIL. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Brasília: Congresso Nacional, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm.  Acesso em 20 ago. 2022.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n°1.639.035/SP. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, julgado em 18.09.2018. Publicado em 15.10.2018.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 1.834.338/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, julgado em 01.09.2020. Publicado em 16.10.2020.

CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 8°ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

DI CELIO, Paulo Salles. Extensão subjetiva da cláusula compromissória: consentimento e realidade comercial. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Rio de Janeiro, 2016.

GAILLARD, Emmanuel Gaillard; SAVAGE, John (eds). Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration. The Hague: Kluwer Law International, 1999.

HANOTIAU, Bernard. Complex arbitrations: multiparty, multicontract, multi-issue and class actions. Kluwer Law International, 2005.

KONDER, Carlos Nelson. O alcance da cláusula compromissória em contratos coligados: leitura a partir da tutela de confiança. Revista Brasileira de Arbitragem, vol.63. São Paulo: ed.RT, 2019.

MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos Coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009

MARTINS, Denise Silveira. Contratos coligados de franquia e locação: efeitos da coligação contratual. Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2012.

NETO, Miguel Ângelo de Barros Moutinho. Do limite constitucional da abrangência objetiva da cláusula compromissória. Monografia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p.50.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – volume III: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 18º ed, 2014.

SALAVERRY, Fernando Cantuarias; DEVILLE, José Luis Repetto. Arbitraje y múltiples contratos. THĒMIS-Revista de Derecho 71, 2017.

[1] Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP. Membro do Núcleo de Arbitragem e Mediação da FDRP (NucAM USP-RP).

[2] BRASIL. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Brasília: Congresso Nacional, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm.  Acesso em 20 ago. 2022.

[3]  ibidem

[4]  CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 8°ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p.192

[5]  BRASIL, op. cit.

[6] DI CELIO; Paulo Salles Cristofaro. Extensão subjetiva da cláusula compromissória: consentimento e realidade comercial. Dissertação (Bacharel em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. fl.60. Rio de Janeiro, 2016, p.13 apud WALD, Arnoldo. A arbitragem, os grupos societários e os conjuntos de contratos conexos. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 1, n. 2, maio/ago. 2004, pp. 48-50.

[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil, volume I, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.502, grifos nossos.

[8]  KONDER, Carlos Nelson. O alcance da cláusula compromissória em contratos coligados: leitura a partir da tutela de confiança. Revista Brasileira de Arbitragem, vol.63. São Paulo: ed. RT, 2019, p.302.

[9] MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos Coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p.99

[10] MARTINS, Denise Silveira. Contratos coligados de franquia e locação: efeitos da coligação contratual. Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2012, p.6

[11] NETO, Miguel Ângelo de Barros Moutinho. Do limite constitucional da abrangência objetiva da cláusula compromissória. Monografia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p.50.

[12]  GAILLARD, Emmanuel Gaillard; SAVAGE, John (eds). Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration. The Hague: Kluwer Law International, 1999, p.295.

[13]  Ibidem

[14] SALAVERRY, Fernando Cantuarias; DEVILLE, José Luis Repetto. Arbitraje y múltiples contratos. Thêmis Revista de Derecho 71, 2017, p.149 apud BORN, Gary. International Commercial Arbitration, 2°ed. Kluwer Law International, 2014, p.1371-1372.

[15] GAILLARD, op. cit, p. 296, tradução nossa.

[16] GAILLARD, op. cit p.296-297

[17] HANOTIAU Bernard. Complex arbitrations: multiparty, multicontract, multi-issue and class actions. Kluwer Law International, 2005, p. 281.

[18] DI CELIO, op cit p.20-21

[19] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 1.834.338/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, julgado em 01.09.2020. Publicado em 16.10.2020.

[20] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n°1.639.035/SP. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, julgado em 18.09.2018. Publicado em 15.10.2018.

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