Arbitragem, privilégio e diversidade

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Arbitragem, privilégio e diversidade: breve nota sobre os resultados da pesquisa conduzida no IX Congresso CAM-CCBC de Arbitragem

 

Eloah Scantelbury[1]

Luis Henrick Pereira[2]

Luiza Pedroso[3]

 

  1. Introdução

 

  1. Nos dias 17 e 18 de outubro de 2022, cerca de 400 pessoas prestigiaram o IX Congresso de Arbitragem do CAM-CCBC (“Congresso CAM-CCBC”) – um dos maiores e mais relevantes eventos anuais da comunidade arbitral brasileira, que se dedica ao debate do presente e futuro da arbitragem. Entre painéis dedicados às questões jurídicas mais intrincadas do mercado, os participantes foram convidados a responder a uma pesquisa composta por 11 perguntas, cujo objetivo era não só promover autorreflexão, mas identificar – ainda que preliminarmente – o perfil predominante daqueles que se sentam nas cadeiras de congressos do porte do Congresso CAM-CCBC.

 

  1. O presente texto tem o objetivo de publicar os resultados da pesquisa conduzida no Congresso CAM-CCBC e dar um pontapé inicial para o alargamento e complexificação das discussões sobre a (falta de) diversidade no mercado arbitral brasileiro – que, apesar de já ter experimentado avanços nesse quesito, sobretudo no que diz respeito à diversidade de gênero, ainda nos parece míope no que diz respeito a outros fatores identitários.

 

  1. Considerando que as pessoas que participam do Congresso CAM-CCBC são majoritariamente agentes atuantes direta ou indiretamente na arbitragem brasileira (seja na qualidade de advogados, árbitros, funcionários de instituições de arbitragem, secretários de tribunais arbitrais etc.), entendemos que os dados coletados em nossa pesquisa configuram importante amostra preliminar das pessoas que compõem o mercado arbitral brasileiro como um todo.

 

Ainda que os resultados da pesquisa devam ser temperados pela proposital ausência de rigor metodológico na colheita dos dados, o que se pretende provocar com a sua divulgação é o quão urgente é reflexão, por nossa comunidade, sobre o perfil dos profissionais que estão dentro e fora dos congressos, correntes de e-mail e salas de audiência.

 

  1. Perfil do participante do Congresso CAM-CCBC (2022)

 

  1. Acesso à educação de qualidade

 

  1. A primeira pergunta da pesquisa de diversidade buscava averiguar se aqueles que participaram do Congresso CAM-CCBC tiveram o privilégio de frequentar escolas privadas durante a maior parte de suas vidas (afirmativa: “estudei em escola particular durante a maior parte da minha vida”).
  2. Dentre as 142 pessoas que responderam à pesquisa, 80% responderam que frequentaram escolas privadas durante a maior parte da vida, ao passo que 20% responderam que não. Esse recorte está distante da realidade da população brasileira – de acordo com o Censo Escolar IBGE de 2021, entre 2017 e 2021, apenas 15% cursaram ensino fundamental em escolas particulares, número que diminui para 12% no ensino médio.[4]

 

  1. Acesso ao ensino de qualidade da língua inglesa

 

  1. A segunda pergunta da pesquisa buscava averiguar se os participantes do Congresso CAM-CCBC tiveram ensino de qualidade da língua inglesa (afirmativa: “tive acesso a um ensino de qualidade da língua inglesa”). Dentre as 139 pessoas que responderam, 85% afirmaram ter tido acesso a ensino de qualidade da língua inglesa, ao passo que 15% responderam que não. De acordo com pesquisa conduzida pelo Instituto de Pesquisa Data Popular, apenas 5,1% da população afirma ter algum conhecimento do idioma inglês.[5]

 

  1. Deficiência

 

  1. A terceira pergunta da pesquisa buscava verificar quantos dos participantes do Congresso CAM-CCBC eram pessoas com deficiência (afirmativa: “não sou uma Pessoa Com Deficiência”). Dentre as 140 pessoas que responderam, 93% afirmaram não serem pessoas com deficiência, e 7% afirmaram ser pessoas com deficiência. Segundo o IBGE, em 2019, 8,4% da população brasileira tinha algum tipo de deficiência e, dentre as pessoas com deficiência, apenas 25,4% estavam empregadas.[6]

 

  1. Região e/ou cidade de origem

 

  1. A quarta pergunta buscava averiguar se os participantes do Congresso CAM-CCBC precisaram mudar de cidade para ter acesso a melhores oportunidades de emprego (afirmativa: “nunca precisei mudar de cidade para ter acesso a melhores oportunidades de emprego”). Dentre as 139 pessoas que responderam, 54% marcaram a opção “falso”, ao passo que 46% responderam que já precisaram mudar de cidade para buscar melhores oportunidades de emprego. Tais índices, demonstram o cenário da concentração territorial ostensiva do mercado da arbitragem nos grandes centros urbanos (sobretudo eixos Sul e Sudeste).

 

  1. A quinta pergunta, também relacionada à região de origem dos respondentes, buscava averiguar se os presentes já haviam sido subestimados no ambiente profissional em virtude de sua cidade ou região de origem (afirmativa: “nunca fui subestimado no ambiente profissional por causa da minha cidade ou região”). 69% responderam que já foram profissionalmente subestimados em razão de sua cidade ou região de origem, o que novamente parece ter ligação à concentração territorial do mercado (além, imagina-se, de vieses e preconceitos estruturais – conscientes ou não – que podem permear a percepção de determinados indivíduos).

 

  1. Gênero

 

  1. A sexta pergunta da pesquisa buscava averiguar se os participantes do Congresso CAM-CCBC já teriam sido subestimados no ambiente acadêmico ou profissional em virtude de seu gênero (afirmativa: “nunca fui subestimado no ambiente acadêmico/profissional por causa do meu gênero”). Dentre as 138 pessoas que responderam à pergunta, 41% – quase a metade – responderam já ter se sentido subestimados na academia e/ou no trabalho em razão do seu gênero. Assumindo que homens e mulheres responderam à pesquisa em proporção similar (50/50%), esse número parece indicar que a maior parte das mulheres se se sente ou já se sentiu acadêmica ou profissionalmente oprimida.
  2. Nesse sentido, a sétima pergunta, também relacionada a gênero, buscava verificar se os presentes já teriam trabalhado em local no qual cargos de maior remuneração eram primordialmente ocupados por homens (afirmativa: “Já trabalhei em local no qual cargos de maior remuneração eram primordialmente (<70%) ocupados por homens”). Essa realidade era verdade para 80% das 138 pessoas que responderam à pergunta – e., a esmagadora maioria de pessoas que, presume-se, pertence ao mercado da arbitragem já se viram em lugares cujas posições melhor remuneradas eram ocupadas por homens.

 

  1. Cor da pele e/ou raça

 

  1. A oitava pergunta circulada aos participantes do Congresso CAM-CCBC buscava averiguar se era comum aos participantes encontrarem pessoas de sua raça/cor em posições de liderança nos locais em que trabalharam (afirmativa: “era comum encontra pessoas da minha raça/cor em posições de liderança nos locais em que trabalhei”). 77% dos respondentes afirmaram ser comum encontrar pessoas da sua raça em posições de liderança. Os outros 23% responderam negativamente – o que parece indicativo de que os cargos de liderança no mercado da arbitragem são ocupados majoritariamente por pessoas de uma raça. Essa realidade – aferível também empiricamente por qualquer um que pertença à comunidade arbitral – reflete o cenário mais abrangente do mercado formal de trabalho brasileiro, no qual pessoas pretas ocupam menos de 30% dos cargos gerenciais.[7]

 

  1. Religião

 

  1. A nona pergunta circulada aos participantes do Congresso CAM-CCBC buscava averiguar se os participantes já teriam se sentido como minoria religiosa em seu ambiente profissional (afirmativa: “nunca me senti como minoria em meu trabalho devido à minha posição/escolha sobre religião”). Dentre as 136 pessoas que responderam, 22% responderam que já se sentiram como minoria em seu trabalho devido à sua escolha e expressão de religiosidade – percentual bastante alinhado com o panorama nacional: segundo o Instituto de Pesquisa Datafolha, em 2018, 26% da população afirmou já ter sofrido preconceito religioso.[8]

 

  1. Orientação sexual e identidade de gênero

 

  1. A décima pergunta buscava averiguar se os participantes já teriam se sentido como minoria em seu ambiente profissional devido à sua orientação sexual (afirmativa: “nunca me senti como minoria em meu trabalho devido à minha orientação sexual”). Dentre as 135 pessoas que responderam à pergunta, 12% responderam que a afirmação era falsa – e., que já se sentiram como minoria, em ambientes profissionais, por conta de sua orientação sexual.

 

  1. O percentual é objetivamente alto, considerando que o IBGE estima que apenas 1,9% da população brasileira se declare homossexual ou bissexual.[9] Presumivelmente, portanto, proporção relevante (ou integral) dos congressistas LGB+ já experimentaram desconforto no trabalho em razão da sua orientação sexual – o que é esperado, dado o panorama nacional. [10]

 

  1. Por fim, a décima primeira pergunta buscava averiguar se os presentes seriam e/ou se teriam colegas transgênero em seus ambientes de trabalho (afirmativa: “Não sou e não tenho colegas trans em meu ambiente de trabalho”). Apenas 5% responderam que sim. O percentual é lamentável, mas não surpreendente, dado que apenas 4% das pessoas travesti e transsexuais têm emprego formal no Brasil.[11]

 

  1. Conclusão

 

  1. A pesquisa conduzida durante o Congresso CAM-CCBC não deixa dúvidas: o mercado de arbitragem brasileiro ainda é formado majoritariamente por pessoas que tiveram diversos privilégios. Essa constatação, já antecipada na introdução deste artigo, mostra o quão urgente é que nossa comunidade reflita sobre e debata o perfil dos profissionais que atuam direta ou indiretamente com arbitragem. O objetivo da pesquisa – e, no limite, deste artigo – é acender a faísca desse debate. Que a constatação da realidade sirva de provocação para que, quem sabe, os resultados de pesquisa similar no Congresso CAM-CCBC de 2033 mostrem que o mercado se tornou mais diverso, mais complexo, e mais rico.

[1] Advogada no Alecrim, Costa e Oliveira Advogados Associados, Diretora do Núcleo Especial de Arbitragem do Norte, Membro do Comitê de Jovens Arbitralistas, Membro do Projeto Jovens no Canal organizado pelo Canal Arbitragem e da Young ICCA, ex-mootie pela Universidade Federal do Amazonas (2019-2020) e ex-coach da Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito Empresarial da UFAM (2021-2022)

[2] Advogado em Eleonora Coelho Advogados. Associate Member no Chartered Institute of Arbitrators (“CIArb”). Conselheiro do Young Members Group do CIArb Brazil Branch. Ex-coordenador e coach do Núcleo de Estudos Permanentes em Arbitragem da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

[3] Advogada em BMA Advogados. Graduada e Mestranda em Direito do Comércio Internacional pela USP.

[4] Disponível em: https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2021/apresentacao_coletiva.pdf. Último acesso em: 12.5.2023.

[5]Disponível em: https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/demandas_de_aprendizagempesquisacompleta.pdf. Último acesso em 12.5.2023. O percentual indicado no texto foi colhido em 2014.

[6] Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101846.pdf. Último acesso em 15.5.2023.

[7]Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/17270-pnad-continua.html?edicao=32275&t=resultados. Último acesso em 12.5.2023.

[8] Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/01/16/adebadbad191eec6d752f5825b00cb45prc.pdf. Último acesso em 12.5.2023.

[9] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/33785-em-pesquisa-inedita-do-ibge-2-9-milhoes-de-adultos-se-declararam-homossexuais-ou-bissexuais-em-2019. Último acesso em 12.5.2023.

[10] Uma pesquisa realizada pela consultoria Mais Diversidade e divulgada pela CNN Brasil revelou que mais da metade dos entrevistados (54%) não sente segurança para falar abertamente sobre a própria orientação sexual ou identidade de gênero no ambiente profissional (https://www.cnnbrasil.com.br/business/lgbtqi-54-nao-sentem-seguranca-no-ambiente-de-trabalho/). Último acesso em 12.5.2023.

[11] Segundo levantamento conduzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, divulgada pelo Guia do Estudante, apenas 4% dos travestis e transsexuais têm emprego formal, 6% têm emprego informal e 90% trabalham com prostituição (https://guiadoestudante.abril.com.br/orientacao-profissional/5-dados-que-expoem-o-desafio-da-populacao-lgbtqia-no-mercado-de-trabalho/. Último acesso em: 12.5.2023.

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