Imparcialidade e Transparência: Uma breve análise de recente posicionamento do STJ sobre o dever de revelação dos Árbitros
Imparcialidade e Transparência: Uma breve análise de recente posicionamento do STJ sobre o dever de revelação dos Árbitros
Mariana Teixeira Muratori[1]
- Introdução
O direito a um tribunal independente e imparcial é um direito fundamental assegurado a todos os indivíduos. Esse direito é reconhecido no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; nos arts. 14 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e, no contexto europeu, nos arts. 6 e 7 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Da mesma forma, como não poderia deixar de ser, a imparcialidade dos árbitros é um requisito essencial da arbitragem[2].
Os árbitros, além de estarem vinculados a deveres de natureza contratual – boa-fé, a lealdade e a cooperação –, possuem o chamado dever de revelação. Esse dever é essencial para a segurança do procedimento, pois é o mecanismo que assegura a equidistância do árbitro em relação às partes[3].
O incidente de suspeição de árbitro tem como objetivo e fundamento a concretização do princípio da imparcialidade do tribunal, oferecendo às partes a possibilidade de requerer o afastamento do julgador quando sua imparcialidade for seriamente comprometida por razões substanciais e relevantes[4].
- Do dever de revelação do árbitro
Um dos temas mais debatidos na arbitragem brasileira nos últimos anos diz respeito à interpretação e à extensão do art. 14, § 1º da Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”). Esse dispositivo estabelece que o árbitro deve, antes de aceitar a nomeação, revelar qualquer circunstância que possa suscitar dúvidas justificadas sobre sua imparcialidade ou independência[5].
A importância do dever de revelação e sua relação com a confiança entre as partes é tamanha que sua violação pode levar à anulação da sentença arbitral, conforme previsto nos incisos II e VIII do art. 32 da Lei de Arbitragem[6].
Não obstante a imparcialidade do árbitro seja uma questão de ordem pública e, portanto, possa ser discutida a qualquer momento[7], não se pode ignorar o dever de boa-fé e cooperação entre as partes, bem como a natureza excepcional da ação anulatória de sentença arbitral.
Nesse sentido, é fundamental destacar que a falha no cumprimento do dever de revelação não se confunde com a imparcialidade do árbitro; a revelação é apenas um elemento que, dependendo das circunstâncias específicas do caso, pode levar à conclusão de parcialidade, sendo essa segunda suficiente para invalidar a sentença arbitral.
Nesse sentido, a doutrina[8] aponta que a violação do dever de revelação, por si só, não é suficiente para comprometer a atuação do árbitro. É necessário que o juiz avalie a relevância e o impacto da omissão para determinar se ela afetou a imparcialidade e independência do árbitro. Isto é, não se examina apenas o descumprimento do dever em si, mas sim a capacidade do fato não revelado de comprometer a sentença arbitral já proferida.
- Do recente posicionamento do STJ
Em junho deste ano, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) proferiu decisão no Recurso Especial nº 2.101.901[9], que tratou justamente das implicações da violação do dever de revelação por parte de árbitros, em uma arbitragem envolvendo empresas do setor de saúde.
No caso, a parte derrotada ingressou com uma ação anulatória de sentença arbitral, alegando que houve violação do dever de revelação por parte de um dos árbitros, essencialmente, por dois motivos: (i) ao não informar sua atuação como árbitro em outros casos ao preencher o questionário de verificação de conflitos de interesse; e (ii) ao omitir que o escritório de advocacia ao qual está vinculado prestava serviços a uma empresa que mantinha relação comercial com a parte vencedora da arbitragem.
Em relação à atuação prévia do árbitro, o STJ entendeu que o erro era irrelevante, uma vez que o currículo do profissional, apresentado durante o procedimento arbitral, já demonstrava sua experiência anterior em arbitragens. Ademais, a parte impugnante teve ciência dessa informação ao longo de todo o processo, mas apenas a questionou após o resultado desfavorável, revelando uma conduta oportunista.
Nesse sentido, os e. Ministro Marco Aurélio Bellizze em seu voto destacou: “Não se concebe, pois, que um fato – ou mesmo a dúvida sobre determinado fato –, que é ou que pode ou deve ser de conhecimento da parte, somente seja aventado na hipótese de sobrevir uma sentença arbitral que lhe seja desfavorável – tal como uma nulidade de algibeira –, em manifesto desbordamento da boa-fé objetiva.”
Quanto à alegação de que o árbitro fazia parte de um escritório que defendia os interesses de um acionista da parte vencedora, o STJ também afastou essa tese. A Corte entendeu que não havia vínculo empresarial entre a parte vencedora e a referida sociedade de advocacia, mas apenas uma relação comercial, o que não configura dúvida justificada sobre a imparcialidade do árbitro.
- Conclusão
A decisão da Corte superior foi acertada ao interpretar o conceito de “dúvida justificada” presente na Lei de Arbitragem, que orienta o dever de revelação.
Sendo uma expressão abstrata, entidades acadêmicas e profissionais domésticas e internacionais publicam orientações e regras para clarificar sua aplicação. Exemplos notáveis são as Diretrizes da International Bar Association (“IBA”)[10] sobre Conflitos de Interesses em Arbitragens Internacionais[11] – que já foram objeto de discussão em newsletter anterior – e, mais recentemente, as Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (“CBAr”) sobre o Dever de Revelação do Árbitro[12].
No caso em questão, os ministros do STJ fundamentaram seus argumentos nas Diretrizes da IBA, ressaltando que “segundo as diretrizes da IBA, o fato de o árbitro indicado representar uma das partes ou uma afiliada de uma das partes constitui caso constante na lista vermelha de situações renunciáveis”.
Além disso, o CBAr desempenhou um papel fundamental ao atuar como amicus curiae, contribuindo para o aprofundamento da análise e a correta aplicação dos princípios arbitrais.
A conclusão alcançada pelo STJ foi de que a simples falha no dever de revelação não deve, por si só, conduzir à anulação automática da sentença arbitral. Nessas situações, o Poder Judiciário deve avaliar se o fato não revelado é capaz de comprometer concretamente a imparcialidade e a independência do árbitro. A Corte fez uma distinção clara entre o dever de revelação e a avaliação da imparcialidade, o que confere maior segurança jurídica aos usuários da arbitragem, ao estabelecer até que ponto a violação do dever de revelação pode gerar nulidade da sentença arbitral.
Por um lado, a decisão do STJ reforça a confiança do Poder Judiciário nas sentenças arbitrais, especialmente ao diferenciar a falha no dever de revelação da falta de imparcialidade e independência do árbitro.
Por outro lado, essa decisão pode gerar um aumento nos questionamentos sobre até que ponto a falha no dever de revelação compromete a imparcialidade e a independência do árbitro, uma vez que o STJ reconheceu a competência do Judiciário para, caso a caso, avaliar o impacto concreto da omissão do árbitro na revelação de fatos relevantes.
- Referências Bibliográficas
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 2.101.901 – SP (2023/0366445-2), Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.06.2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202303664452&dt_publicacao=21/06/2024 / Acesso em: 26.11.2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, SEC n. 9.412/EX, Corte Especial, julgado em 19/4/2017, DJe de 30/5/2017. Disponível em: https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=54813618&tipo=3&nreg=201 / Acesso em: 26.11.2024.
COMITÊ BRASILEIRO DE ARBITRAGEM. Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (“CBar”) sobre o dever de revelação. Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/ / Acesso em: 26.11.2024.
FICHTNER, José A.; MANNHEIMER, Sergio N.; MONTEIRO, André L. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2018. E-book. ISBN 9788530982881. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530982881/. Acesso em: 17 set. 2024.
INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Princípio Geral n.º 2. Resolução aprovada pelo Conselho da IBA em 23 out. 2014. Disponível em: https://www.ibanet.org/Publications/publications_IBA_guides_and_free_material.aspx. Acesso em: 17.12.2024.
LEMES, Selma Maria Ferreira. O DEVER DE REVELAÇÃO DO ÁRBITRO, O CONCEITO DE DÚVIDA JUSTIFICADA QUANTO A SUA INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE (ART. 14, § 1., DA LEI 9.307/1996) E A AÇÃO DE ANULAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL (ART. 32, II, DA LEI 9.307/1996). Revista de Arbitragem e Mediação, v. 36, p. 231-251, 2013.
PAVÃO, Amauri S.; GIL, Fernanda Lopes de A.; VISCONTI, Gabriel C.; et al. Estudo e Prática da Arbitragem. São Paulo: Grupo Almedina, 2023. E-book. ISBN 9786556278599. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556278599/. Acesso em: 17 set. 2024.
[1] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Estagiária nas áreas de contencioso cível e arbitragem no escritório Levy & Salomão Advogados.
[2] FICHTNER et al, 2018, p.53.
[3] PAVÃO et al, 2023, pp.69/70.
[4] Idem, pp.70/71.
[5] LEMES, 2013, pp.232-234.
[6] Art. 32. É nula a sentença arbitral se: II – emanou de quem não podia ser árbitro; VIII – forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, SEC n. 9.412/EX, Corte Especial, julgado em 19/4/2017, DJe de 30/5/2017. Disponível em: https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=54813618&tipo=3&nreg=201 / Acesso em: 26.11.2024.
[8] LEMES, 2013, pp. 237/239.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 2.101.901 – SP (2023/0366445-2), Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.06.2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202303664452&dt_publicacao=21/06/2024 / Acesso em: 26.11.2024.
[10] Nota Explicativa ao Princípio Geral n.º 2: […] (3) Revelação pelo Árbitro (a) Se existirem factos ou circunstâncias que possam, aos olhos das partes, suscitar dúvidas quanto à imparcialidade ou independência do árbitro, cumpre ao árbitro revela-los às partes, à instituição arbitral ou a outra autoridade responsável pela nomeação (se existir, e se assim for requerido pelas regras institucionais aplicáveis) e aos coárbitros, se os houver, antes de aceitar a sua nomeação ou, se já tiver ocorrido a aceitação, assim que deles tiver conhecimento. (b) Uma declaração antecipada ou renúncia prévia em relação a possíveis conflitos de interesses provenientes de factos e circunstâncias que possam acontecer futuramente não isenta o árbitro do seu permanente dever de revelação de acordo com o Princípio Geral 3(a). (c) Decorre dos Princípios Gerais 1 e 2(a) que o árbitro que tenha feito uma revelação se considera imparcial e independente das partes, apesar dos factos revelados e, assim, capaz de cumprir os seus deveres como árbitro. De outra forma, o árbitro teria recusado a sua indicação ou nomeação logo que ela ocorreu, ou teria renunciado. (d) Qualquer dúvida quanto à necessidade de revelação de determinados factos ou circunstâncias por um árbitro deve ser resolvida em favor da revelação. (e) Ao analisar a existência, ou não, de factos ou circunstâncias passíveis de revelação, o árbitro não deve levar em conta se o processo arbitral está numa fase inicial ou adiantada.
[11] INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Princípio Geral n.º 2. Resolução aprovada pelo Conselho da IBA em 23 out. 2014. Disponível em: https://www.ibanet.org/Publications/publications_IBA_guides_and_free_material.aspx. Acesso em: 17.12.2024.
[12] Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (“CBar”) sobre o dever de revelação. Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/ / Acesso em: 26.11.2024.