O caso PWC V. Lefebvre

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 Julia Martins Gomes 

  Bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Privado pela Université Paris II Panthéon-Assas.

 

Este ano, a rentrée foi agitada para a comunidade arbitral francesa. Uma decisão recente da Corte de cassação é apontada como uma das mais importantes dos últimos tempos em matéria de arbitragem internacional envolvendo consumidores. Trata-se do arrêt PWC vs Lefebvre, da primeira câmara cível, proferido em 30 de setembro de 2020 (n° 18-19.241).

O presente comentário tem por objetivo relatar tal decisão e, para tanto, fornecerá um breve panorama do princípio competência-competência e da jurisprudência que a antecede (conhecida como “Jaguar” e “Rado”).

Na França, o princípio competência-competência se encontra codificado no artigo 1448, alínea primeira, do Código de processo civil francês, aplicável a arbitragens internacionais por força do artigo 1506, parágrafo primeiro, do mesmo texto legal. O dispositivo consagra a prioridade cronológica atribuída ao árbitro para se pronunciar sobre sua própria jurisdição, mas prevê uma ressalva: na presença de uma convenção de arbitragem, o juízo estatal deve sempre declinar de sua competência, exceto se o juízo arbitral ainda não tiver sido acionado e se tal convenção for manifestamente nula ou manifestamente inaplicável.

Tal exceção tem origem pretoriana e foi positivada pelo decreto n° 2011-48 de 13 de janeiro de 2011. Ela é de particular interesse a arbitragens envolvendo consumidores. Isso porque, nos termos da segunda versão do artigo 2061 do Código civil francês, a validade da cláusula compromissória só era reconhecida na hipótese de relações litigiosas qualificadas de comerciais de acordo com o antigo artigo 631 do Código de comércio francês. No entanto, essa regra não era (e ainda não é) aplicável em matéria de arbitragem internacional, mesmo naquelas envolvendo consumidores. É justamente neste contexto que se inserem os casos Jaguar (Cass. 1 civ., 21 de maio de 1997, n° 95-11.429 e n° 95.11-427) e Rado (Cass. 1 civ., 30 de março de 2004, n° 02-12.259).

A primeira disputa (Jaguar) diz respeito à venda de um automóvel de luxo por um profissional inglês a um particular francês; a segunda (Rado), à abertura de uma conta e gestão de fundos por sociedades estadunidenses em nome de uma cliente francesa. No âmbito de conflitos surgidos em ambos os casos, os particulares recorreram aos tribunais estatais, mas não obtiveram êxito, pois as cláusulas compromissórias que figuravam em seus contratos foram invocadas por seus cocontratantes, não tendo sido acolhido o argumento de que seriam nulas por figurarem em contratos de consumo. Confirmando as decisões dos juges du fond, a Corte de cassação relembrou que os contratos analisados envolviam os interesses do comércio internacional (critério que distingue arbitragem nacional de internacional na França). Em seguida, precisou que as cláusulas compromissórias deveriam ser aplicadas em virtude da independência deste tipo de disposição em direito internacional, sujeita apenas a regras de ordem pública internacional. Apontou ainda que incumbia aos árbitros a tarefa de fazê-lo, a fim de apreciarem sua própria jurisdição, especialmente no que tange à arbitrabilidade do litígio, sem prejuízo do posterior controle do juiz estatal em sede de anulação.

É assim que, impedidos de se valer do artigo 2061 do Código civil no âmbito de arbitragens internacionais, os consumidores estavam sujeitos ao princípio competência-competência em sua plenitude, excluído o recurso àquela exceção prevista pelo direito francês.

Nesse cenário, a decisão PWC vs Lefebvre se anuncia como uma escapatória aos consumidores. Ainda que não possam recorrer à regra do artigo 2061 do Código civil, eles agora dispõem de uma espécie de tábua de salvação: as normas derivadas da diretiva 93/13/CEE de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas em contratos concluídos com consumidores (“diretiva 93/13/CEE”), destacando-se os artigos 3, 6, § 1 e 7, § 1, assim como o item 1, ‘q’ de seu anexo.

Tal arrêt se insere no contexto de uma belicosa partilha de bens. Uma herdeira francesa ajuizou uma ação judicial, na França, em face da sociedade espanhola PWC Landwell-PricewaterhouseCoopers Tax & Legal Services (“PWC”), acusando-a de ter cometido erros graves no exercício da missão de acompanhar e defender seus interesses na sucessão de seu pai na Espanha. PWC contestou a jurisdição do juiz francês, invocando a cláusula compromissória contida no contrato firmado com a cliente. A seu turno, esta última se opôs à aplicação da cláusula, alegando que seria abusiva de acordo com o artigo 3 da diretiva 93/13/CEE.

Por meio de uma decisão de 2 de maio de 2017 do juge de la mise en état do tribunal de grande instance de Pontoise (n° 14/05624) e de uma decisão de 15 de fevereiro de 2018 da corte de apelação de Versalhes (n° 17/03779), os juges du fond acataram a tese da herdeira. Eles descartaram a cláusula compromissória apoiando-se em dois elementos: (i) a ausência de prova de que ela teria sido objeto de uma negociação individual; e (ii) a caracterização de um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes.

Ato contínuo, PWC interpôs recurso perante a Corte de cassação, alegando, inter alia, que a corte de apelação teria violado o artigo 1448 do Código de processo civil, sendo vedado aos juges du fond desprezar a cláusula compromissória no caso concreto. De acordo com PWC, a apreciação da aplicabilidade da cláusula seria incompatível com o ofício do juiz estatal na medida em que a análise do caráter abusivo de uma convenção de arbitragem com base na diretiva 93/13/CEE suporia examinar as condições nas quais a cláusula teria sido negociada e concluída, o que seria inconciliável com a constatação de seu caráter manifestamente nulo ou manifestamente inaplicável.

Todavia, tal tese não foi acolhida pela Corte de cassação. Apoiando-se na diretiva 93/13/CEE, bem como na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a corte francesa deu grande destaque à proteção processual que serve de escudo ao consumidor. Nesse sentido, estimou que “a regra processual de prioridade editada por esse texto [artigo 1448 do Código de processo civil] não pode ter por efeito tornar impossível, ou extremamente difícil, o exercício dos direitos conferidos ao consumidor pelo direito comunitário, pelos quais as jurisdições nacionais têm a obrigação de velar” (§13, tradução livre). Concluiu então que “a corte de apelação – depois de ter examinado a aplicabilidade, levando em conta todos os elementos de direito e de fato necessários dos quais ela dispunha, descartou a cláusula compromissória em razão de seu caráter abusivo –, sem violar as disposições do artigo 1448 do código de processo civil, cumpriu seu ofício de juiz estatal ao qual incumbe assegurar a plena eficácia do direito comunitário de proteção do consumidor” (§14, tradução livre).

No que tange às outras problemáticas decididas, convém apontar brevemente que a Corte de cassação manteve a decisão atacada integralmente, confirmando a posição dos juges du fond quanto à abusividade de cláusula compromissória – considerada uma cláusula estandardizada – por ausência de prova de negociação individual, bem como quanto à competência do juiz francês por força dos artigos 17.1 (c) e 18 do Regulamento n° 1215/2012 de 12 de dezembro de 2012 (Regulamento Bruxelas I bis).

É patente que tal decisão paradigmática se insere em uma lógica de descontinuidade em relação aos casos Jaguar e Rado. Todavia, já despontam debates doutrinários a seu respeito. Com efeito, não obstante, a Corte de cassação ter empregado sua nova técnica de motivação mais loquaz, ainda pairam dúvidas sobre a mensagem que quis transmitir.

É assim que, na doutrina, há quem possua uma visão mais comedida sobre o alcance do arrêt: ele apenas consagraria uma nova hipótese de nulidade manifesta da convenção arbitral (La Semaine Juridique Entreprise et Affaires n° 42, 15 out. 2020, act. 697). Todavia, um entendimento mais rígido parece prevalecer, segundo o qual a decisão representaria um descarte completo do princípio competência-competência em matéria de arbitragem internacional envolvendo consumidores (Jérémy Jourdan-Marques, Dalloz Actualité, 6 nov. 2020 ; Stavroula Koulocheri, Actualités du droit, 7 out. 2020, Lamyline/Wolters Kluwer ; Armand Terrien, Arbitration of Consumer Disputes in France: Get Thee Behind Me Competence-Competence?, Kluwer Arbitration Blog, 12 nov. 2020 ; Maximin De Fontmichel, La Semaine Juridique Edition Générale n° 48, 23 nov. 2020, 1311 ; Daniel Mainguy, AJ contrat 2020 p. 485 ; Sylvain Bollée, Gaz. Pal. 24 nov. 2020, n° 391e5, p. 27 . Thomas Clay, Recueil Dalloz 2020, p. 2484 ; Sabine Bernheim-Desvaux, Contrats Concurrence Consommation n° 12, dez. 2020, comm. 178).

Quanto a essa doutrina majoritária, a reflexão de Emmanuel Gaillard merece destaque. Para o autor, a escolha de afastar o competência-competência nesse caso particular seria salutar: ao não jogar com a elasticidade do conceito de convenção manifestamente nula/inaplicável, a Corte de cassação evitaria o enfraquecimento do princípio (Journal du droit international (Clunet) n° 4, out. 2020, 22).

Muitas dúvidas ainda persistem não apenas sobre a verdadeira solução dada pelo arrêt – sobretudo quanto ao fundamento do descarte do princípio competência-competência – (Jérémy Jourdan-Marques, op. cit.), mas também sobre seu possível impacto para além das relações consumeristas, como nas disputas trabalhistas, por exemplo (Armand Terrien, op. cit. ; Maximin De Fontmichel, op. cit.). Diante de tantas interrogações, uma coisa é certa: se uma parte do trabalho da doutrina é decifrar as decisões da Corte de cassação, muita tinta ainda será gasta.

 

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