O dever de revelação do árbitro e a exceção da informação pública

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Um comparativo entre o Brasil e a França

Julia Thedy[1]

Lara Fernanda Yokota[2]

            As discussões que giram em torno das obrigações de independência e imparcialidade dos árbitros são delicadas. Ao passo que tais obrigações constituem uma garantia processual de extrema importância, elas também podem ser instrumentalizadas em estratégias de protelação e de nulidade de algibeira. Trata-se de situações em que uma parte obstaculiza deliberadamente a formação do tribunal arbitral a partir de mecanismos de oposição e de recusa de candidatos a árbitro, ou de situações em que uma parte deixa de suscitar um fato que poderia gerar o questionamento da independência ou da imparcialidade de um árbitro no intuito de garantir fundamentos para, caso discorde do deslinde da disputa, solicitar a declaração da nulidade da sentença em um momento futuro.

            A problemática descrita acima é especialmente interessante sob as lentes do direito brasileiro. A Lei n° 9.307/1996 (“Lei de Arbitragem”) tem a particularidade de demandar a confiança das partes como requisito para a investidura do árbitro.[3] Esse requisito deve ser destacado pois, mesmo que a quebra da confiança entre o árbitro e as partes não constitua uma das causas de nulidade da sentença arbitral sob o artigo 32 da Lei de Arbitragem, tal causa já foi reconhecida pela jurisprudência brasileira como fundamento para afastar a sentença arbitral.[4]

            Nesse contexto, o dever de revelação do árbitro assume considerável importância, na medida em que fornece parâmetros para avaliar a existência, inexistência ou a quebra da confiança entre o árbitro e as partes. Não surpreende, portanto, que iniciativas recentes tenham buscado conferir maior objetividade ao dever de revelação. É o caso, por exemplo, do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC, cuja versão de 2022 passou a prever a obrigação das partes de identificar as pessoas – físicas e jurídicas – juridicamente relevantes ao procedimento arbitral[5], conferindo objetividade ao processo de revelação. Outro exemplo: os enunciados da II      Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (“II      Jornada”) propõem, dentre outras orientações, que o dever de revelação perdura após a formação do tribunal arbitral[6] e que, no mesmo sentido da jurisprudência inglesa[7], o descumprimento do dever de revelação não implica per se na parcialidade ou na falta de independência dos árbitros[8].

            O enunciado n°. 92 da II Jornada sugere que “cabe às partes colaborar com o dever de revelação” e que o “árbitro não está obrigado a revelar informações públicas”. Os autores do enunciado sugerem que o dever de revelação é uma “via de mão dupla” e que as partes ao litígio devem fornecer os dados necessários para que o árbitro possa realizar as revelações pertinentes e relevantes. No entanto, com relação à facultatividade da revelação de informações públicas, não foram fornecidos maiores detalhes ou justificativas.

            Na França, a jurisprudência já reconheceu que as informações públicas configuram exceções ao dever de revelação do árbitro (“exception de notoriété”).[9] A experiência francesa tem mostrado, entretanto, que certa cautela é necessária, pois não se busca dar margem à inversão do ônus de revelação, mas apenas evitar condutas desleais, como as nulidades de algibeira. As dificuldades surgem principalmente com relação à notoriedade das informações disponíveis na internet: quão facilmente acessível deve ser a informação para que seja considerada pública? Qual o limite de clicksnecessários?[10] E se o acesso às informações depender de assinatura paga? A informação segue pública?[11]

            No interesse de se traçar um comparativo, sob o direito brasileiro, o conceito de “informação pública” poderia ser interpretado no sentido de “fato público e notório“, o que permitiria evitar questionamentos detalhistas como os acima levantados. No entanto, é de se questionar se um tal standard seria capaz de filtrar as situações em que um fato, embora público, não fosse notório o suficiente para que toda a coletividade – ainda que arbitralista      – o conhecesse. É o caso, por exemplo, do árbitro indicado por uma empresa cuja afiliada é publicamente patrocinada pelo escritório do qual o candidato é sócio. Nesse exemplo, ainda que os processos fossem públicos e houvesse algumas publicações registrando o fato, não seria evidente presumir que toda a coletividade (ainda que arbitralista) teria conhecimento da relação entre as sociedades, o que dirá sobre a relação entre o candidato a árbitro e a parte. Nesse caso, ainda que todas as informações estivessem disponíveis publicamente, é possível que a facultatividade da revelação não fosse algo a se desejar.

            Independentemente do que se considerar uma “informação pública“, fato é que a não revelação baseada na publicidade do fato é prejudicial à formação da relação de confiança entre o árbitro e as partes, e vem em contramão à lógica de todo o mecanismo. Assim, como contrapeso à sugestão de que o “árbitro não está obrigado a revelar informações públicas“, sugere-se que tal orientação não se destine necessariamente ao árbitro na análise de quais fatos revelar, mas sim aos tribunais nacionais no âmbito de controle da validade de sentenças arbitrais. Assim, ressalvadas as particularidades de cada caso, o árbitro continuaria a revelar informações (ainda que) públicas, mas beneficiaria de uma presunção de boa-fé a seu favor, no intuito de evitar nulidades de algibeira, quando a não revelação for suscitada como fundamento de suposta ausência de imparcialidade e/ou independência.

[1]      Advogada, Herbert Smith Freehills Paris LLP.

[2]      Advogada, Toledo Marchetti Advogados.

[3]      Artigo 14, §1° da Lei de Arbitragem.

[4]      Cf., por exemplo: BRASIL, TJSP, Apelação Cível nº. 1056400-47.2019.8.26.0100, DJe 25/10/2020, Rel. Fortes Barbosa. Ver, nesse mesmo sentido, justificativa ao Enunciado n°. 109 da IIa Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios.

[5]      Artigo 9.5 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC de 1 de novembro de 2022.

[6]      Enunciado n°. 109 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios: “O dever de revelação do árbitro é de caráter contínuo, razão pela qual o surgimento de fatos que denotem dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência deve ser informado no curso de todo o procedimento arbitral”.

[7]      INGLATERRA E PAÍS DE GALES. Supreme Court, UKSC 48, 2020, Halliburton Company v. Chubb Bermuda Insurance Ltd.

[8]      Enunciado n°. 110 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios: “A omissão do árbitro em revelar às partes fato que possa denotar dúvida quanto à sua imparcialidade e independência não significa, por si só, que esse árbitro seja parcial ou lhe falte independência, devendo o juiz avaliar a relevância do fato não revelado para decidir ação anulatória”.

[9]      FRANÇA, Cass., 1 Ch. civ., 16 de Dezembro de 2015, No. 14-26279; FRANCE, Cass., 1 Ch. civ., 19 de Dezembro de 2018, No. 16-18349.

[10]    Cf. por exemplo: FRANÇA, Paris, Ch. 16, 25 de Maio 2021, Delta Dragon Import SA c/ BYD Auto, n° 18/20625, préc., §31 et s. Este caso diz respeito a um pedido de anulação de sentença arbitral no qual a apelante alegou que o tribunal arbitral havia sido composto de maneira irregular tendo em vista a omissão, pelo árbitro único, de fatos relevantes que seriam susceptíveis de levantarem dúvidas sobre a sua independência e imparcialidade. Em suma, a apelante sustentou que ela só teve conhecimento da omissão do árbitro após a prolação da sentença arbitral, quando contratou uma empresa para pesquisar sobre as relações do árbitro com a parte adversa. No entanto, a Corte de Apelação de Paris negou provimento ao recurso por considerar que a informação supostamente omitida pelo árbitro era acessível através de técnicas básicas de pesquisa na internet que dependiam de poucos clicks, concluindo que a apelante se absteve de contestar a imparcialidade e independência do árbitro único em tempo útil.

[11]    Cf., por exemplo: FRANÇA, Paris, Pôle 5 – Ch. 16, 22 de Fevereiro 2022, n° 20/08929, SAS Chantier Naval Couach, §65. FRANÇA, Paris, 22 de Fevereiro 2022, Bestful International Trading Ltd., n° 20/05869. Em ambos os casos, a Corte de Apelação de Paris negou provimento aos respectivos pedidos de anulação de sentença arbitral com base no desrespeito do dever de revelação dos árbitros. Em particular, os juízes franceses consideraram que o fato da informação depender de assinatura paga (como é o caso de sites como Kluwer) não é suficiente para afastar o argumento de que o fato é notório.

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