Títulos executivos e Arbitragem
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA SOBRE A SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL PELA INSTAURAÇÃO DE ARBITRAGM
Amanda Pierre de Moraes Moreira é advogada da área de Resolução de Disputas do Campos Mello Advogados, mestranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ).
Beni Flint é advogado da área de Resolução de Disputas do Campos Mello Advogados, com especialização em arbitragem pela Washington College of Law e Pós-Graduação em Direito Patrimonial. Graduado na PUC-RJ.
É pacífico no Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e entre especialistas que proposta a execução de instrumento com a natureza de título executivo extrajudicial que contenha cláusula compromissória, o executado, caso deseje se valer da via arbitral para alegar que o exequente não tem direito à execução, deve instaurar procedimento arbitral para discutir as matérias que, caso não houvesse cláusula compromissória, poderiam ser levantadas em sede de Embargos à Execução.
Afinal, se o executado não reconhece o crédito ou o título executado, precisa apresentar defesa e tem o interesse em desconstituir o título executivo por meio de sentença a ser proferida pelos árbitros. Os árbitros poderão analisar as matérias de mérito que poderiam ser endereçadas por meio de Embargos à Execução, cuja incumbência de distribuí-los cabe ao devedor, especialmente pela hipótese do inciso VI do art. 917 do CPC: “Art. 917. Nos embargos à execução, o executado poderá alegar: (…) VI – qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento.”.
Nesse sentido, a I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado 12: “A existência de cláusula compromissória não obsta a execução de título executivo extrajudicial, reservando-se à arbitragem o julgamento das matérias previstas no art. 917, incs. I e VI, do CPC/2015”.
Carlos Alberto Carmona, em estudo acadêmico voltado a esse tema, leciona que “proposta a demanda executiva, o que fazer com os embargos à execução que o devedor poderá manejar? Parece razoável deduzir que, havendo cláusula compromissória – e tratando os embargos de matéria de fundo (validade, eficácia e extensão do título executivo) -, caberá levar tais questões aos árbitros, tocando ao juiz togado apenas o julgamento de embargos que tratem de questões processuais”[1].
Nesse passo, a jurisprudência brasileira parece ter firmado a orientação de que a simples instauração de procedimento arbitral é suficiente para que seja suspensa a execução, pois configura-se uma relação de prejudicialidade, nos termos do art. 313, inciso V, alínea a, do CPC, que prevê que “Suspende-se o processo: (…) V – quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente”.
Com efeito, em 2018, a Segunda Seção do STJ, quando do julgamento do CC 150.830/PA, relatado pelo E. Ministro Marco Aurélio Bellizze, foi instada a dirimir conflito positivo de competência entre o Juízo de Direito da 1ª Vara Cível e Empresarial de Belém/PA e o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil Canadá – CAM/CCBC, tendo sido determinada a suspensão do feito executivo enquanto não decidido pelos árbitros se o exequente, parte requerida na arbitragem, teria efetivo direito de cobrança da quantia lá executada, verbis:
“É inegável, outrossim, que há prejudicialidade externa entre a ação de execução e o procedimento que se desenvolve perante a Câmara Arbitral. A decisão que será proferida pelos árbitros diz respeito exatamente ao débito que é perseguido na execução. Assim, o resultado do procedimento arbitral produzirá efeitos diretos sobre o prosseguimento da ação de execução. (…) na esteira dos fundamentos acima delineados, torno definitiva a liminar anteriormente deferida, a fim de reconhecer a competência do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil Canadá – CAM/CCBC, a obstar o prosseguimento da execução perante o Juízo estatal enquanto não definida a discussão lá posta ou não advir deliberação em sentido contrário do Juízo arbitral reputado competente”.
O E. Tribunal de Justiça de São Paulo tem demonstrado aderência a tal tese, como se vê dos recentes julgados abaixo, datados de fevereiro e junho de 2021, respectivamente, por meio dos quais se obstou o prosseguimento de execuções de títulos extrajudiciais. O primeiro julgado versa sobre execução visando à cobrança de valores supostamente devidos em razão da celebração de transação extrajudicial entre as partes, e a segunda intentava a execução de diversas notas promissórias.
Em ambos os casos, diante da alegação de que ainda não teriam sido implementadas as condições prévias à exigibilidade dos valores constantes do instrumento, cuja discussão de mérito caberia na via arbitral, o TJ/SP, citando expressamente o CC 150.830/PA do C. STJ, houve por bem determinar a suspensão da execução, até a decisão final de mérito do juízo arbitral em razão da simples alegação de existência de cláusula compromissória, verbis:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução. Embargos. Decisão que determinou suspensão da demanda até que as questões sejam decididas pelo juízo arbitral – A extinção da execução somente será possível caso haja decisão do juízo arbitral reconhecendo sua competência ou assim determinando. Exegese do art. 485, VII, do NCPC. Suspensão viável – Precedente do c. STJ – Não se conhece do pedido alternativo formulado pela agravante nas razões recursais, porque não foi objeto do ato impugnado, cabendo ao Tribunal reexaminar o decidido pelo juízo singular, não tomar o seu lugar, o que custaria indevida supressão de um grau de jurisdição – Decisão mantida. Recurso desprovido, na parte conhecida”[2].
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de Título Extrajudicial. Notas promissórias emitidas “pro solvendo” a um contrato de mútuo para a implementação de um projeto de energia solar. Decisão que deferiu o arresto de bens e rejeitou a exceção de pré-executividade oposta pela agravante. Inobstante o descabimento da exceção de pré-executividade, pois a matéria arguida não pode ser conhecida de ofício, demandando dilação probatória, é descabido o arresto de bens, ante a existência de cláusula compromissória arbitral, estipulada no negócio jurídico, o que altera a executividade do título, devendo a questão ser levada ao juízo arbitral. Execução que deve ser suspensa até que haja decisão do tribunal arbitral sobre o litígio. Valores bloqueados que devem assim permanecer, depositados em conta judicial. Decisão modificada. RECURSO PROVIDO.”[3].
Em que pese tudo indicar que são acertadas as construções acima em relação à convivência harmônica entre a cláusula compromissória e a execução de título extrajudicial, há de se ressaltar que, atualmente, não são feitas maiores reflexões a respeito de uma notória vantagem do devedor que pode levar a questão à jurisdição arbitral em relação àquele que só pode discutir o mérito da dívida perante o Poder Judiciário. Ao devedor que pode recorrer aos “embargos arbitrais”, basta que seja iniciado procedimento arbitral para que a execução movida em seu desfavor seja suspensa; enquanto que, para o autor dos embargos à execução, a suspensão da execução posta não é tão simples.
Isto é, aplicando-se as razões de decidir dos julgados acima, o “embargante”, o requerente do procedimento arbitral, não precisaria garantir o juízo, tampouco demonstrar estarem presentes os requisitos necessários à concessão de tutela provisória, tal como disposto no art. 919, §1º, do CPC[4], aplicável aos casos de embargos à execução instaurados pela via estatal. Por outro lado, para a parte contrária, a suspensão do procedimento executório mediante a garantia do juízo o protege consideravelmente, enquanto, no caso arbitral, o exequente ficaria desamparado dessa garantia.
A depender do valor objeto da execução, trata-se, nitidamente, de um privilégio conferido exclusivamente às partes contratantes de instrumentos que contenham cláusula compromissória e contra quem venha a ser instaurada ação executiva. Em que pese os custos da arbitragem possam ser substancialmente maiores se comparados às custas processuais devidas em razão da oposição dos embargos à execução, há uma efetiva vantagem econômica ao devedor, que não precisará dispor imediatamente da quantia executada (ou mesmo contratar seguro garantia judicial ou outra espécie de título semelhante) para garantir o juízo da execução enquanto discute a exigibilidade da dívida na via arbitral, permanecendo o feito executivo suspenso até que seja proferida sentença definitiva de mérito.
Em sentido diverso, e com um melhor indicativo de tratamento simétrico, Luiz Fux, E. Ministro do Supremo Tribunal Federal, defende que “diante do fato de que existindo cláusula arbitral não poderá se valer o devedor dos embargos à execução para a discussão do direito substancial, e que a arbitragem desempenhará o papel de tais embargos, parece-nos que o mais coerente que a apresentação, tanto do pedido cautelar quando do pedido de instauração da arbitragem, ocorra no prazo de 15 (quinze) dias, o mesmo conferido ao devedor para a apresentação dos embargos do devedor, quando inexiste convenção de arbitragem e mediante a devida garantia.”[5].
No entanto, como se viu, apesar do entendimento transcrito na doutrina supracitada, a jurisprudência, até o momento, parece orientar de maneira distinta, criando assimetria entre o juízo arbitral e o estatal no que se refere à desnecessidade de prestação de garantia para suspensão do procedimento executório. Isso não parece ser a melhor saída para o desejável tratamento isonômico merecido às duas vias jurisdicionais.
[1] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n º 9.307/96, 3ª ed., ver. Atual. E ampliada, São Paulo: Atlas, 2009. P. 120
[2] TJ/SP, AI nº 2036396-10.2021.8.26.0000, 37ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. JOSÉ WAGNER DE OLIVEIRA MELATTO PEIXOTO, j. 26.02.2021, grifou-se.
[3] TJ/SP, AI nº 1048082-41.2020.8.26.0100. 15ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. RAMON MATEO JÚNIOR. 02/06/2021, grifou-se. Comentários dos autores: os valores bloqueados na execução eram ínfimos se comparados ao valor executado.
[4] “O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.”
[5] FUX, Luiz. O novo processo de execução (o cumprimento da sentença e a execução extrajudicial). Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 418 – grifamos.