Arbitragem e o Direito de Família
Arbitragem em conflitos familiares: breves considerações
Isaac de Oliveira Conti[1]
A possibilidade de se submeter à arbitragem questões atinentes ao Direito de Família tem suscitado muita discussão, ressalvas, e, até mesmo, gerado controvérsias doutrinárias, em tempos recentes.
O presente artigo não busca exaurir a questão aqui levantada, mas apenas pretende abordar as nuances de tema que, paulatinamente, tem emergido no cenário arbitral, e inspirado estudos.
Em geral, conflitos familiares exigem a facilitação de diálogo entre os envolvidos, e, até mesmo, a tentativa de sua reaproximação — o que pode, a princípio, ser propiciado por meio de outro método adequado de solução de controvérsias, autocompositivo: a mediação familiar.
Contudo, quanto à possibilidade de conflitos familiares serem objeto de arbitragem, é possível se ofertar um “spoiler”: depende. Isso, porque, à luz da Lei nº 9.307/1996 (“Lei de Arbitragem”), tem-se que não é todo e qualquer litígio que pode ser levado à apreciação de um Juízo Arbitral, já que aduz o artigo 1º, que apenas “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (grifo nosso).
A parte inicial do referido artigo gera a primeira baliza a ser observada, para que um conflito (seja familiar ou de outra natureza) seja conduzido à arbitragem: deve-se vislumbrar a “arbitrabilidade subjetiva”, ou seja, a existência de partes capazes, aptas a adquirir direitos e contrair deveres e obrigações na vida civil[2] (capacidade de direito). Trata-se do clássico questionamento: “quem pode se submeter à arbitragem, ou quem pode contratar?[3]”.
Da pergunta supra, gera-se outro grande debate na doutrina: pessoas incapazes – ainda que assistidas ou representadas –, ou mesmo os chamados “entes despersonalizados”, podem integrar um procedimento arbitral?
Quanto aos “entes despersonalizados” (aqui enquadrados, v.g., a massa falida, o espólio, condomínios, etc), tem-se que, a princípio, podem ser parte na arbitragem, vez que possuem capacidade para estar em juízo e dispor de direitos. Mas, em certos casos, dependerão de autorização judicial ou, mesmo, de assembleias particulares para celebração de convenção arbitral[4].
Em relação aos incapazes, há doutrinadores que defendem que, desde que assistidos ou representados – e que se cuide de controvérsia relativa a direitos patrimoniais disponíveis – possam ser parte na Arbitragem[5].
Em sentido diverso, há juristas que refutam a submissão de controvérsias a tribunais arbitrais quando uma das partes for incapaz (ainda que assistida ou representada). Nesse sentido, aduz Carlos Alberto Carmona que a instituição de um juízo arbitral depende da total existência de direitos disponíveis, não podendo ser este instaurado quando há parte incapaz, ainda que representada ou assistida por outrem, já que, em determinado momento, pode-se ter de enfrentar algo irrenunciável, indisponível[6].
A segunda parte destacada no artigo 1º da Lei de Arbitragem cuida da chamada “arbitrabilidade objetiva”. Ali, delimitam-se quais questões e direitos podem ser levados à arbitragem, concluindo-se que apenas direitos passíveis de transação podem ser dela objeto[7].
Partindo-se de tais premissas, a arbitrabilidade de questões relativas ao Direito de Família também deve se conjugar ao artigo 852 do Código Civil. Nele, estipula-se a impossibilidade de estabelecimento de compromisso arbitral que aborde questões de direito pessoal de família – dentre outras – que não possuam caráter estritamente patrimonial[8].
Tal fato gera certa hesitação quando da condução de casos familiares a tribunais arbitrais, pela possível fragmentação de direitos ao longo do procedimento que acabam, obrigatoriamente, a ter de ser submetidos a tribunais estatais, ante sua indisponibilidade.
O jurista Flávio Tartuce apresenta alguns óbices quanto à arbitrabilidade de casos de família: questões relativas a bens materiais disponíveis (a princípio, arbitráveis) podem envolver apego afetivo – por exemplo, quadros, obras de arte, bens móveis ou imóveis e, até mesmo, animais. Nesses casos, mostra que se pode retirar a pura “neutralidade patrimonial” de disputas familiaristas a qualquer momento do procedimento[9], o que revela certa insegurança em sua instauração. No mesmo sentido, aduz que:
[…] o afeto pode estar preso ao patrimônio, como no exemplo concreto da insistência de um ou outro ex-consorte em permanecer com um determinado bem […] havendo grande dificuldade em se separar os bens das afeições de cada um dos cônjuges e companheiros[10].
Tais exemplos esboçam a dificuldade de separar o “joio do trigo”, quando da análise do que é arbitrável ou não no Direito de Família. Casos eivados de convenção antenupcial ou cláusula compromissória que imponha a um dos cônjuges a obrigatória submissão de seus casos familiares à jurisdição arbitral – renunciando, totalmente, à jurisdição estatal –, ou que revelem posições econômicas discrepantes entre os cônjuges[11], podem reverberar em nulidade absoluta, ou até caracterizar cláusula compromissória patológica[12]. Isso tanto pela possibilidade de envolverem questões de direito indisponível no curso das disputas, quanto, também, pela possível desigualdade das partes contratantes.
Resta evidente, a essa altura, que questões atinentes à disponibilidade sobre a legítima de herdeiros necessários não podem ser submetidas à jurisdição arbitral, uma vez atingir direitos indisponíveis.
Sob o ângulo da possibilidade da arbitragem no Direito de Família, porém, juristas se curvam à arbitrabilidade do quantum de pensão alimentícia, desde que haja partes capazes e exista prévia fixação da obrigação alimentar[13], podendo o valor da pensão ser transacionável e, portanto, arbitrável.
Ademais, há autores que vislumbram matérias arbitráveis quanto a divórcio, dissolução de união estável ou, até mesmo, morte e condições de exercício de guarda de menores, desde que seu âmago seja observado com cautela, e não se toquem em questões eventualmente indisponíveis[14]. Aqui, defendem até a possibilidade de haver a partilha de bens decorrentes da dissolução de casamento ou união estável diretamente na via arbitral – uma vez já reconhecida a existência da união -, por mero exercício da autonomia da vontade das partes (ex-consortes)[15], mas sempre com a cautela de não se esbarrar em direitos intransigíveis.
Do exposto, não restam dúvidas que o tema aqui tratado é polêmico e instigante, dependendo, decerto, de maiores debates doutrinários, práticos e jurisprudenciais, para se solidificar. Entrementes, a liberdade de escolha do julgador, a confidencialidade, a celeridade do procedimento e, até mesmo, a economia (em razão da instância única) evidenciam que não se pode excluir, de modo absoluto, as questões relativas ao Direito de Família da Arbitragem[16], desde que haja a devida cautela.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura. Foi coordenador do Grupo de Estudos em Arbitragem e Contratos Internacionais da USP (ABCINT-FDUSP), entre 2018 e 2021. Atualmente, é Pós-Graduando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado.
[2] Nesse sentido, é o art. 1º, do Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 19.08.2022.
[3] Na mesma esteira, é o art. 851, do Código Civil, que aduz: “é admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 19.08.2022.
[4] Pontifica Francisco José Cahali que, nos casos de entes despersonalizados como o espólio ou condomínio tenham autorização judicial ao inventariante ou de assembleia de condôminos, no caso dos condomínios. Para mais, vide: CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação e resolução do CNJ 125/2010. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 133-136.
[5] Sob esse espeque, é a doutrina de JUNIOR, Luiz Antonio Scavone. Manual de Arbitragem. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 21.
[6] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2009, p. 37.
[7] Segundo Carmona “são arbitráveis, portanto, as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade, e desde que as partes possam livremente dispor acerca do bem sobre que controvertem”. In CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39.
[8] Reza o artigo 852, do Código Civil: “É vedado compromisso para solução de questões de estado, direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm .
Acesso em: 19.08.2022.
[9] TARTUCE, Flávio. Arbitragem e Direito de Família. Revista Migalhas, 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/360224/arbitragem-e-direito-de-familia .
Acesso em: 20.08.2022.
[10] TARTUCE, Flávio. Da extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões. Segunda parte. Da arbitragem. Revista do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1158/Da+extrajudicializa%C3%A7%C3%A3o+do+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+das+Sucess%C3%B5es.+Segunda+parte.+Da+arbitragem . Acesso em: 21.08.2022.
[11] TARTUCE, Flávio. Arbitragem e Direito de Família. Revista Migalhas, 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/360224/arbitragem-e-direito-de-familia . Acesso em: 20.08.2022.
[12] Quanto à impossibilidade de se arbitrar causas derivadas de espécie de cláusulas de adesão quanto à renúncia à jurisdição estatal em relação a questões familiares, a doutrina – encabeçada por Tartuce – entende que se aplicaria o artigo 424 do Código Civil, que aduz serem nulas cláusulas que estipulem renúncia antecipada de direitos resultantes da natureza do negócio (no presente caso, a questões atinentes ao Direito de Família, e que podem abordar, direta ou indiretamente, direitos indisponíveis).
[13] Nesse sentido, vide: CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 437.
[14] NEVES, Gustavo Kloh Müller. As formas alternativas de solução de conflitos e o direito de família. In: SOARES, Fábio Costa (Org.). Acesso à Justiça. Segunda série. Rio de Janeiro, 2004, p. 136.
[15] CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação e resolução do CNJ 125/2010. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 133-136.
[16] SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. A arbitragem no Direito de Família. Anais do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família: Famílias: Pluralidade e Felicidade. Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/310.pdf . Acesso em: 21.08.2022.