A abordagem “pay now, argue later” e os dispute boards

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A abordagem “pay now, argue later” e os dispute boards

Maúra Guerra Polidoro

Especialista em direito societário pelo Insper

Advogada na Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados

 

  1. Introdução

Os dispute boards são instrumentos de resolução de conflitos normalmente utilizados em projetos de longa duração. Também chamados de comitês de resolução de disputas, os dispute boards são órgãos independentes compostos por especialistas – do direito ou do setor da construção e engenharia – que acompanham a execução destes projetos de modo a resolver eventuais disputas de forma rápida e eficaz.

Desde o ano de 2016, o Banco Mundial passou a prever a utilização de diferentes modelos contratuais a depender da obra que seria financiada[1] e, no modelo contratual indicado para Design and Build, adota-se o yellow book da Federação Internacional de Engenheiros Consultores (“FIDIC”), o qual possui a previsão de utilização de dispute adjudication board[2].

Mesmo no Brasil, a importância dos dispute boards tem sido crescente. Por exemplo, há não muito tempo foi sancionada a Lei nº 14.133/2021[3], que estabeleceu as normas gerais de licitações e contratos administrativos, prevendo a utilização de comitês de resolução de disputas[4].

A concepção de submeter antecipadamente uma disputa a um dispute board enfatiza a abordagem pagar agora e argumentar depois – chamada em inglês de “pay now, argue later approach” – que é fundamental para a dinâmica de funcionamento de projetos de longa duração e de grandes obras. Como a sua função precípua é, em última instância, a proteção do andamento dos trabalhos e o bom funcionamento do contrato, essa abordagem tem por finalidade não deixar que determinado projeto pare por conta de um litígio surgido entre as Partes, como será melhor explicado abaixo.

 

  1. A abordagem “pay now, argue later”

Em um projeto de construção ou engenharia, é comum que surjam disputas entre as partes envolvidas, como o dono do projeto, o empreiteiro, os subempreiteiros, os fornecedores etc. Essas disputas podem ser relacionadas a atrasos na execução, custos adicionais, bem como relacionadas à qualidade do trabalho.

A abordagem “pay now, argue later[5] envolve o pagamento do valor requerido sem esperar que a disputa seja resolvida em uma arbitragem. Segundo essa abordagem, o pagamento poderia se dar após a decisão do board ter sido tomada, mesmo que uma das partes ainda esteja descontente e que pretenda contestar a decisão em arbitragem. Isso porque, as decisões proferidas por um dispute board seriam, de fato, vinculantes, apesar de, normalmente, não serem decisões finais.

Caso alguma das partes discorde da decisão do dispute board, é importante que emita um aviso de insatisfação para preservar o seu direito de iniciar a arbitragem em uma data posterior. A não emissão de tal notificação, na maioria das vezes, fará com que a decisão do dispute board se torne final e vinculativa, resultando na perda do direito de a parte insatisfeita dar início a uma arbitragem.

Da mesma forma que a parte insatisfeita poderá iniciar uma arbitragem, caso a decisão do dispute board não seja cumprida, a outra parte também poderá iniciar o procedimento de arbitragem. Neste caso, o requerente poderá solicitar ao tribunal arbitral, como questão preliminar, que se emita uma Sentença Parcial obrigando a parte inadimplente a cumprir a decisão do dispute board, sendo esta outra faceta do “pay now, argue later”.

Essa abordagem pode ser vantajosa porque mantém o progresso do projeto e evita custos adicionais e atrasos significativos. No entanto, as partes envolvidas devem confiar na integridade e imparcialidade do dispute board para garantir uma resolução justa da disputa[6]. Além disso, é importante que os termos e condições para o pagamento antecipado e a resolução de disputas sejam adequadamente definidos em contrato.

 

  1. Conclusão: a presunção de legitimidade das decisões dos dispute boards

Assim, uma vez que os membros do dispute board geralmente estarão cientes das Partes envolvidas, das metas e dos objetivos do projeto em questão, poderão estar mais bem capacitados a agir prontamente para prevenir o surgimento de disputas ou para tomar decisões ágeis quando elas ocorrerem.

Vale ressaltar que, na prática, os membros do dispute board costumam sugerir às partes que todos os assuntos sejam levados para discussão nas reuniões ordinárias justamente para que haja a oportunidade de autocomposição. Desta forma, apesar de diversos dos regulamentos preverem      que as disputas serão submetidas por escrito, na maioria das vezes os membros do dispute board já têm conhecimento do problema de antemão por conta do acompanhamento da obra no dia a dia.

Portanto, faz bastante sentido que o tribunal arbitral, preliminarmente, emita uma sentença parcial obrigando a parte inadimplente a cumprir a decisão do comitê para apenas depois analisar detalhadamente a decisão do board em seus pormenores, até mesmo mediante a realização de uma perícia.

Nas palavras de Leonardo Toledo da Silva e João Paulo Pessoa: “cabe ao Judiciário ou aos árbitros, criarem uma preferência pela decisão técnica, indeferindo somente de forma excepcional, quando constatada alguma clara irregularidade ou descumprimento de princípio basilar”[7]. Isso porque, ao convencionarem as partes a forma de atuação de um dispute board, estabelecem elas, contratualmente, uma presunção de legitimidade de suas decisões.

 

  1. Referências

APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Natureza jurídica, eficácia e obrigatoriedade da cláusula de dispute board. In: Manual de dispute boards – teoria, prática e provocações. Coord. Augusto Barros de Figueiredo e Ricardo Medina Salla. São Paulo: Quartier Latin, 2021.

BARALDI, Eliana. Reflexões sobre o cumprimento forçado das decisões dos dispute boards e a arbitragem. In: Manual de dispute boards – teoria, prática e provocações. Coord. Augusto Barros de Figueiredo e Ricardo Medina Salla. São Paulo: Quartier Latin, 2021.

DA SILVA, Leonardo Toledo. PESSOA, João Paulo. Os Dispute Adjudication Boards (“DAB”) em contratos públicos e privados e o problema das decisões judiciais liminares. In: Manual de dispute boards – teoria, prática e provocações. Coord. Augusto Barros de Figueiredo e Ricardo Medina Salla. São Paulo: Quartier Latin, 2021.

DRBF – Dispute Board Manual: a guide to best practices and procedures. Dispute Resolution Board Foundation. North Carolina, 2019.

FIDIC Fédération Internationale des Ingénieurs-Counsel website. Disponível em: <https://www.fidic.org/about-FIDIC/federation> Acesso em: 10.04.2024.

MARCONDES, Fernando. O sistema de solução de conflitos nos Contratos FIDIC. In: Soluções de disputas em contratos de construção na América Latina. São Paulo: Pini, 2016.

POLIDORO, Maúra Guerra. Análise da natureza jurídica dos dispute boards e a presunção de legitimidade de suas decisões. Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 72/2022 | p. 125 – 145 | Jan – Mar / 2022

[1] Standard Procurement Documents (SPD).

[2] Dispute adjudication board é aquele comitê que está habilitado a efetivamente decidir a forma como deve ser resolvida a disputa e não meramente recomendar a forma de resolução.

[3] O artigo 151 estabelece a possibilidade de se utilizar “a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem” como “meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias”.

[4] No mesmo sentido a Lei nº 11.079/2004 – que trata das normas gerais sobre parcerias público-privadas – e a alteração legislativa feita em 2005 à Lei nº 8.987/1995 – que trata do regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos – as quais já previam a possibilidade de emprego de mecanismos privados de resolução de disputas desde muito antes de 2021, além, é claro, de diversas leis estaduais que já previam a utilização do instituto.

[5] “A ideia de submissão prévia da disputa a um DB seria garantir a sua autoridade, não tornar facultativa a submissão de uma disputa a um DB, muito menos seu cumprimento, e de enfatizar o pay now, argue later approach, tão caro à dinâmica do estabelecimento dos DBs”. BARALDI, Eliana. Reflexões sobre o cumprimento forçado das decisões dos dispute boards e a arbitragem. In: Manual de dispute boards – teoria, prática e provocações. Coord. Augusto Barros de Figueiredo e Ricardo Medina Salla. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p.363.

[6] Apesar de os membros do dispute board estarem sujeitos a todos os deveres e impedimentos a que estão sujeitos os árbitros, em 2018, o Dispute Resolution Board Foundation – DRBF atualizou o seu Code of Ethical Conduct para fazer constar quatro cânones que devem ser seguidos por seus membros, sendo eles os seguintes: (a) divulgação de fatos que possam gerar aparência de conflito de maneira expedita, diligente, ordenada e imparcial; e (d) condução das reuniões de acordo com as disposições contratuais e procedimentos operacionais aplicáveis.

[7] DA SILVA, Leonardo Toledo. PESSOA, João Paulo. Os dispute adjudication boards (“DAB”) em contratos públicos e privados e o problema das decisões judiciais liminares. In: Manual de dispute boards – teoria, prática e provocações. Coord. Augusto Barros de Figueiredo e Ricardo Medina Salla. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p.434.

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