A arbitragem em disputas envolvendo propriedade intelectual na era digital

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Pedro Girelli Bezerra[1]

 1. Introdução

A Propriedade Intelectual (“PI”) é um conceito ímpar e fundamental para a economia moderna. Para uma melhor compreensão do assunto, adota-se a definição feita pelo artigo 2º, inciso VIII, da Convenção de Estocolmo de 1967[2], que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, segundo o qual a Propriedade Intelectual pode ser conceituada como “os direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.” Nesse sentido, a PI pode ser caracterizada como o ramo do Direito Intelectual que tem por objetivo maior a regulamentação e a tutela de todos os produtos que são frutos da invenção da mente humana.

De maneira geral, a Propriedade Intelectual pode ser definida como controle jurídico sobre bens econômicos (BARBOSA, 2010). Dessa forma, a PI dialoga com as especificações do patrimônio impalpável de uma empresa ou pessoa física, abrangendo desde patentes de invenções a desenhos industriais e segredos comerciais.

Ainda, como a internet possibilitou o aumento de fluxo de capitais de produtos imateriais, a PI surge como um importante instituto nesse campo cibernético. Se, por um lado, tal tecnologia possibilitou a democratização do acesso à informação, por outro, um risco significativo à proteção desse instituto emergiu, justamente pela facilidade de distribuição de conteúdo, eventualmente, sem qualquer tipo de regulação pelo mundo afora.

Nesse viés de rápida propagação de conteúdo nas plataformas digitais, também deve ser levado em conta que a relação entre o mundo digital e a PI é relativamente nova para os estudiosos e, por conseguinte, para os legisladores. De fato, já existem alguns diplomas legislativos vigentes ao redor do globo, tendo como exemplo a Lei de Propriedade Intelectual, no contexto brasileiro (“LPI”), do Copyright Act, na legislação americana, e da Lei de Patentes da União Europeia. No entanto, dada a rápida transformação que ocorre no mundo online, por vezes, esses não conseguem abranger as novas tecnologias que impactam na proteção do patrimônio imaterial.

2. A arbitragem como método de resolução de disputas de propriedade intelectual na era digital

A arbitragem como método alternativo na resolução de conflitos é um meio heterocompositivo em que um ou mais árbitros são      escolhidos para decidir sobre o litígio em questão. No Brasil, é disciplinada pela Lei nº 9.307/96, também conhecida como Lei de Arbitragem, posteriormente complementada pela Lei 13.129/2015. Tais diplomas estabelecem as regras para a prática da arbitragem no país, bem como os requisitos para a validade da convenção de arbitragem, a constituição do tribunal arbitral, o procedimento arbitral, a sentença arbitral e sua homologação judicial.

Esse instituto possui diversas vantagens frente ao sistema jurídico estatal tradicional, como a possibilidade de confidencialidade[3], celeridade e especialidade. Em relação a esse último, pode-se destacar que não é raro disputas de PI envolverem aspectos técnicos excessivamente complexos, que poderão ser submetidos a um ou mais árbitros especializados para resolver a controvérsia.

Ademais, no que tange à confidencialidade, tem-se que, na verdade, não existe obrigação legal nesse sentido. O árbitro possui somente o poder de discrição, conforme estabelece o art. 13, parágrafo 6º, da Lei de Arbitragem. No entanto, como a maioria dos processos arbitrais tramita perante câmaras que possuem regulamentos internos com disposições específicas nesse caminho, o instituto da confidencialidade é, na prática, aplicado em muitos casos.

Dito isso, a possibilidade de confidencialidade da arbitragem implica, muitas vezes, a ausência de publicidade presente nos processos judiciais, o que se amolda bem as características dos contratos de exploração de propriedade industrial. Esses, frequentemente, tratam de informações confidenciais compartilhadas entre as partes, e durante a resolução de disputas pode haver referências a essas questões, de forma que, em um processo confidencial, o risco de vazamento dessas seria mínimo.

A importância desse cenário é particularmente evidente em casos em que a transferência de conhecimentos técnicos não é registrável, como é o caso do “know-how“, que frequentemente atua como um complemento para a transação de um direito de propriedade industrial. Se uma disputa envolvendo informações confidenciais é submetida a uma jurisdição estatal, será extremamente difícil manter a confidencialidade dos conhecimentos transmitidos, o que pode causar danos substanciais a ambas as partes envolvidas.

Ademais, é importante destacar que as lides relacionadas à Propriedade Intelectual frequentemente lidam com disputas que ultrapassam fronteiras, envolvendo diversas jurisdições, bem como múltiplas leis substantivas. Nesse contexto, afirma-se de forma clara que umas das principais vantagens da arbitragem é a capacidade das partes envolvidas escolherem qual lei material será aplicada ao caso, conforme preconiza o art. 2º da Lei nº 9.307/1996, dentro do contexto brasileiro, mas que também encontra regras similares mundo afora. Tal faculdade, de acordo com o Professor Carlos Alberto Carmona[4], faz com que a lei aplicável influencie diversos aspectos da arbitragem, incluindo a validade da convenção de arbitragem, a admissibilidade de provas, a interpretação do contrato e a forma de prolação do laudo arbitral.

Destarte, vale aqui mencionar a Convenção de Nova York, dado o seu papel central na promoção da resolução de disputas internacionais por meio da arbitragem. Isso porque permite que sentenças arbitrais estrangeiras sejam reconhecidas e executadas dentro dos países que são signatários. Utilizando o Brasil como exemplo, a sentença arbitral estrangeira deve ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça para que possa ter eficácia jurídica, competência esta recém pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, que modificou o artigo 105, I, “i” da Constituição Federal.

Com efeito, caso o litígio fosse submetido a diversos tribunais estatais em diferentes países, o risco de serem proferidas sentenças conflitantes aumentaria significativamente, justamente pelas leis domésticas se portarem de forma diferente e esses órgãos não serem especializados no assunto. Por certo, o uso da arbitragem permite que esse problema seja mitigado, na medida em que as partes terão autonomia de eleger um órgão julgador e a legislação aplicável ao deslinde da causa.

3. Desafios para a arbitragem em disputas de propriedade intelectual

A utilização      da arbitragem nas disputas que versam sobre PI ainda é tema controverso nas legislações de países mundo afora. Tanto as legislações europeias quanto as latino-americanas entendem que para uma matéria possuir a possibilidade de ser submetida a esse processo, é necessário que se trate de direitos patrimoniais disponíveis. No entanto, algumas questões podem encontrar óbice legal em alguns países, a exemplo da caducidade de patente, dentro da surgidas na seara da propriedade industrial. Nesse sentido, o entendimento majoritário atualmente é que as disputas não seriam arbitráveis caso se tratassem de: a) casos em que a decisão declaratória validasse ou não um direito que tenha efeito erga omnes; b) casos em que se trate de um interesse público inegável; c) casos em que os direitos de PI em questão tenham sido outorgados exclusivamente pelo Estado[5]. Isso porque, nesses casos, haveria a presença do interesse público envolvido, o que atrairia a competência para os tribunais estatais. As partes que preveem cláusulas arbitrais em seus contratos, portanto, devem observar se os direitos de PI em tela são arbitráveis de acordo com a lei aplicável, bem como no foro do local onde a sentença arbitral precise ser executada, eventualmente.

A título exemplificativo, os países da tradição common law, como os Estados Unidos, permitem a resolução de disputas de patentes pela via arbitral     , seja através da inclusão de uma cláusula de arbitragem em um contrato que envolva uma patente ou por meio de um acordo para submeter uma disputa existente à arbitragem[6]. Contudo, não há uma lei federal que explicitamente permita a arbitragem de disputas de direitos autorais, embora os tribunais tenham reconhecido a arbitrabilidade dessas questões. Por fim, também não há lei federal nos Estados Unidos que permita a arbitragem vinculativa de disputas de marcas registradas.

Nos países da tradição civil law, as disputas de PI entre as partes privadas são, em sua grande maioria, consideradas arbitráveis. A Suíça pode ser usada como exemplo, já que adota uma postura liberal em relação à arbitragem. A Seção 177 do Direito Privado Internacional Suíço prevê um leque muito amplo no que tange à arbitrabilidade. Todavia, determinados subtópicos não são considerados cobertos por essa norma, a exemplo da validade da patente, tendo em vista que a concessão dela é feita por um Estado, o que atrai a jurisdição para um tribunal local. Por certo, cabe às partes litigantes avaliarem se o direito em questão se encaixa no rol daqueles vetados de serem resolvidos pela arbitragem ou não.

Por fim, no cenário brasileiro, é sabido que o uso da arbitragem cresce com o passar dos anos, prova disso é que na última década houve um aumento de 600% de novos casos nas câmaras arbitrais.[7] No que tange a utilização desse método heterocompositivo no cenário das disputas de PI, tem-se que esse tema representava 3% dos casos, segundo dados divulgados em 2014, pela CAM-CCBC – Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. Existem algumas razões que explicam esse número relativamente baixo. A principal delas diz respeito a preocupação levantada por alguns estudiosos brasileiros que podem ocorrer naquelas situações, por exemplo, que o réu da ação contesta a validade do direito de propriedade intelectual registrado do requerente. Nesse caso, o árbitro estaria diante de uma situação que, possivelmente, teria que invalidar um ato praticado por uma autoridade estatal (Instituto Brasileiro de Marcas e Patentes). Assim, de acordo com Selma Lemes, as decisões que versem sobre a validade dos direitos de PI excederiam os poderes de um tribunal arbitral.

Nestes casos, na prática, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido reiteradamente que o art. 56, parágrafo 1º da LPI deve ser desconsiderado, sendo os juízes estatais impedidos de decidir incidentalmente quanto à validade dos direitos de PI, devendo a ação ser proposta na Justiça Federal. Consequentemente, há o risco de os árbitros se sentirem obrigados a suspender o processo de arbitragem caso surja uma questão de validade, a fim de prevenir possíveis contestações futuras à decisão arbitral.

4. Conclusão

Conforme exposto, a Propriedade Intelectual é um conceito ímpar para a economia moderna, dada a nova dinâmica comercial vivenciada. Tendo em vista a crescente utilização da internet, torna-se cada vez mais importante fortalecer esse instituto, haja vista a facilidade de distribuição de conteúdo e o significativo risco à PI nesse ambiente.

Nessa esteira, a arbitragem pode ser um meio efetivo na resolução de conflitos que envolvam esse objeto. Isso porque, diante da constante internacionalização das demandas relativas à essa matéria, esse método alternativo é considerado um meio resolutivo mais adequado e eficiente, não só pela escolha do tribunal, mas também pela eleição das leis utilizadas.

Por fim, embora em uma primeira abordagem a aplicação da arbitragem possa parecer vantajosa nesses casos, deve-se ficar atento se a disputa versa sobre direitos passivos de serem submetidos a esse instituto. Cada país possui um entendimento próprio      no que concerne à arbitrabilidade objetiva, podendo-se vislumbrar uma semelhança de entendimentos de forma agrupada entre as nações que adotam a common law e o civil law.

5. Bibliografia    

ARBITRAGEM INTERNACIONAL. Arbitragem Internacional e Propriedade Intelectual (IP) Disputas • Arbitragem. Arbitragem Internacional. Disponível em: <https://www.international-arbitration-attorney.com/pt/international-arbitration-and-intellectual-property-ip-disputes/>. Acesso em: 18 abr. 2023.

EM, Arbitragem. Arbitragem em propriedade Intelectual em um mundo de inovação – Migalhas. Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/349612/arbitragem-em-propriedade-intelectual-em-um-mundo-de-inovacao#:~:text=Um%20dos%20principais%20%C3%A9%20justamente,versem%20sobre%20direitos%20patrimoniais%20dispon%C3%ADveis.>. Acesso em: 18 abr. 2023.

FERREIRA, Selma; LEMES. Arbitragem em Propriedade Intelectual -OMPI. n. 1, 1997. Disponível em: <http://selmalemes.adv.br/artigos/artigo_juri34.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2023.

‌Moodle USP: e-Disciplinas. edisciplinas.usp.br. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6100849/mod_resource/content/1/CARMONA%20C.A.%20Arbitragem%20e%20Processo__removed%20%281%29.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2023.

CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

Convenção que institui a Organização Mundial da Propriedade Intelectual. [s.l.: s.n., s.d.]. Disponível em: <https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_250.pdf>.

Barbosa, Denis Borges. Uma introdução à Propriedade Intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.‌

IP Arbitration in Brazil: What is the Current Scenario? – Kluwer Arbitration Blog. Kluwer Arbitration Blog. Disponível em: <https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2020/05/10/ip-arbitration-in-brazil-what-is-the-current-scenario/>. Acesso em: 19 jun. 2023.

[1] Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro do Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI) e do Labirinto da Codificação do Direito Processual Internacional

[2] Convenção que institui a Organização Mundial da Propriedade Intelectual. [s.l.: s.n., s.d.]. Disponível em: <https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_250.pdf>.

[4] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

[5] FERREIRA, Selma; LEMES. Arbitragem em Propriedade Intelectual -OMPI. n. 1, 1997. Disponível em: <http://selmalemes.adv.br/artigos/artigo_juri34.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2023.

[6] ARBITRAGEM INTERNACIONAL. Arbitragem Internacional e Propriedade Intelectual (IP) Disputas • Arbitragem. Arbitragem Internacional. Disponível em: <https://www.international-arbitration-attorney.com/pt/international-arbitration-and-intellectual-property-ip-disputes/>. Acesso em: 20 abr. 2023.

[7] REDAÇÃO JOTA. Número de novos casos de arbitragem em câmaras aumenta 600% em uma década. JOTA Info. Disponível em: <https://www.jota.info/coberturas-especiais/seguranca-juridica-investimento/numero-de-novos-casos-de-arbitragem-em-camaras-aumenta-600-em-uma-decada-04102022>. Acesso em: 20 jun. 2023. ‌

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