Arbitragens com Múltiplas Partes – Uma Visão dos Regulamentos de Arbitragem de Câmaras Brasileiras
ARBITRAGENS COM MÚLTIPLAS PARTES – UMA VISÃO DOS REGULAMENTOS DE ARBITRAGEM DE CÂMARAS BRASILEIRAS
Mariana Martos Yamashita[1]
Lucas B. Morimoto da Silva[2]
- Introdução
Diversos aspectos dos procedimentos arbitrais vêm ganhando destaque diante da crescente complexidade das disputas submetidas à arbitragem. Entre esses aspectos, destacam-se temas como a constituição do tribunal arbitral, a consolidação de procedimentos e o financiamento por terceiros, que suscitam debates relevantes tanto do ponto de vista prático quanto teórico.
Nesse contexto, torna-se essencial compreender como os regulamentos das principais câmaras arbitrais brasileiras abordam essas e outras questões procedimentais. Este trabalho propõe uma análise comparativa dos regulamentos do CAM-CCBC (2022), da CCI (2021), da CAMARB (2019) e do CIESP/FIESP (2013), com o objetivo de identificar convergências, diferenças e potenciais impactos sobre a condução dos procedimentos arbitrais.
- Arbitragem com Múltiplas Partes
Não raras vezes, acadêmicos e profissionais encontram problemas para conceituar o termo “Arbitragens com Múltiplas Partes”[3]. Tal dificuldade se dá, entre outros fatores, pela amplitude conceitual que abarca tanto questões procedimentais, ou processuais, no que importa ao deslinde do procedimento arbitral[4].
Nesse tipo de cenário, uma questão central pode ser se todas — ou apenas algumas — das partes consentiram à arbitragem, especialmente quando há envolvimento de partes não signatárias e são levantadas objeções quanto à ausência de consentimento para se submeterem ao procedimento arbitral[5].
Esse tema pode envolver também aspectos processuais, como a admissibilidade dessas partes não signatárias na arbitragem sem um acordo expresso[6], ou ainda como o tribunal arbitral será constituído.
Por outro lado, as doutrinas que admitem que uma parte não signatária seja considerada como integrante do acordo arbitral dizem respeito à questão de fundo sobre se essa parte, de fato, manifestou consentimento à arbitragem[7].
Dessa forma, as arbitragens com múltiplas partes impõem uma análise que transita entre questões procedimentais, como a admissibilidade e a formação do tribunal, e questões de fundo, relacionadas à extensão do consentimento à arbitragem. A delimitação clara desses aspectos é fundamental não apenas para garantir a validade do procedimento, mas também para assegurar o respeito aos princípios do devido processo legal e da autonomia da vontade, pilares centrais do sistema arbitral.
- Indicação de árbitros em Arbitragens com Múltiplas Partes
Conforme mencionado no item 2, supra, o procedimento de nomeação de árbitros em arbitragens com múltiplas partes é uma questão controversa e relevante no que diz respeito à preservação do princípio da igualdade[8]. A arbitragem multiparte traz desafios à equidade na formação do tribunal arbitral, sobretudo quando há partes no mesmo polo com interesses não totalmente alinhados. O Regulamento do CAM-CCBC adota modelo mais flexível, permitindo que sua Presidência nomeie todo o tribunal — inclusive em casos de revelia — após avaliar a existência de diferentes polos de interesse. Em arbitragens administradas pela CIESP/FIESP, as partes de um mesmo polo devem indicar um árbitro em comum; se não houver consenso, a escolha de todos os árbitros cabe ao Presidente da Câmara. De forma similar, o regulamento da CAMARB prevê indicação conjunta e, em caso de dissenso, a Diretoria nomeia todos os árbitros, inclusive o presidente do tribunal.
O regulamento da CCI adota lógica semelhante: múltiplos requerentes ou requeridos devem indicar um árbitro em conjunto, sob pena de intervenção da Corte para formar o tribunal.
- Intervenção de terceiro financiador
A regulamentação da intervenção de terceiros, especialmente no que tange ao financiamento por terceiros (third-party funding), é assimétrica entre as instituições. A Câmara CIESP/FIESP aborda a matéria em seu Código de Ética, permitindo o compartilhamento de informações com terceiros financiadores ou potenciais financiadores, desde que estes assumam, por escrito, o dever de confidencialidade. No CAM-CCBC, é exigido que as partes informem, tão logo possível, a existência de financiamento de terceiros, com vistas a permitir a avaliação de potenciais conflitos de interesse pelos árbitros.
O regulamento da CCI apresenta disposição ainda mais abrangente, impondo às partes o dever de notificar prontamente a Secretaria, o tribunal arbitral e os demais participantes quanto à existência e identidade de terceiros financiadores, sempre que estes tiverem interesse econômico no resultado da arbitragem[9]. Já o regulamento da CAMARB permanece silente quanto à intervenção de terceiros, o que pode representar uma lacuna relevante à luz das tendências contemporâneas da arbitragem comercial, especialmente em disputas de alta complexidade.
- Consolidação dos procedimentos
A consolidação de procedimentos arbitrais, instrumento relevante para a racionalização de recursos e harmonização de decisões, encontra-se expressamente prevista nos regulamentos do CAM-CCBC e da CCI. Ambas as instituições admitem a consolidação de arbitragens ainda que baseadas em convenções distintas, desde que se verifique a identidade das partes, a conexão entre as relações jurídicas subjacentes e a compatibilidade das convenções. A decisão compete à Presidência[10] (CAM-CCBC) ou à International Court of Arbitration, nos casos de procedimentos CCI, que também devem considerar o estágio de cada procedimento e a eventual constituição de tribunais distintos.
A CAMARB, embora não trate da matéria sob a rubrica de “consolidação”, confere ao tribunal arbitral do primeiro procedimento a competência para decidir sobre a conexão ou reunião de demandas, quando houver identidade de partes, causa de pedir ou objeto. Essa decisão deve preceder a tramitação dos demais procedimentos, os quais permanecem suspensos até a deliberação. Por fim, o regulamento da CIESP/FIESP não apresenta previsão específica sobre a consolidação de arbitragens, o que pode limitar a atuação coordenada da instituição em contextos de litígios interligados.
- Considerações Finais
A análise dos regulamentos de arbitragem de câmaras brasileiras revela uma crescente preocupação em disciplinar, ainda que de modo heterogêneo, as peculiaridades das arbitragens com múltiplas partes. As três matérias examinadas neste artigo, representam pontos nevrálgicos na garantia do princípio da igualdade e da eficiência do procedimento arbitral.
A constatação de que nem todos os regulamentos abordam integralmente essas questões, e de que há disparidade entre os que o fazem, reforça a necessidade de que as partes atuem de forma proativa e estratégica na elaboração da cláusula compromissória. A escolha do regulamento arbitral e da instituição administradora não deve ser feita de modo genérico, mas sim à luz das particularidades do negócio jurídico e das possíveis hipóteses de litígios futuros.
Conclui-se, assim, que a diversidade regulatória existente entre as câmaras brasileiras não constitui um obstáculo à arbitragem, mas sim uma oportunidade para a construção de soluções mais ajustadas à realidade de cada caso concreto.
[1] Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Case Manager da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem Ciesp/Fiesp. Vice-presidente do Comitê de Jovens Arbitralistas do CBMA (CJA/CBMA). Membro do Conselho do New Voices da Câmara Ciesp/Fiesp. E-mail: mariana.yamashita@ciesp.com.br
[2] Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro fundador do Jovens no Canal (Canal Arbitragem). Atua como advogado e assistente de tribunais arbitrais de forma independente. Integrante da lista de Árbitros da Arbtrato. Possui certificação em Privacy and Data Protection Essentials pela EXIN (PDPE).
[3] Sobre os problemas conceituais e terminológicos acerca de “Arbitragens com Múltiplas Partes”, os autores recomendam: OHLROGGE, Leonardo. Multi-Party and Multi-Contract Arbitration in Brazil. São Paulo: Quartier Latin, 2020. HANOTIAU, Bernard. Complex arbitrations: Multi-party, multi-contract and multi-issue. Kluwer Law International BV, 2020, (Introdução);
[4] Mencionamos, por exemplo, a própria dificuldade que a doutrina possui para encontrar um “padrão terminológico” acerca das “Arbitragens com Múltiplas Partes”. Exemplo das discussões podem envolver as demandas coletivas, como estudado por: MARIANI, Rômulo Greff. Arbitragens Coletivas no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2015, pp. 33 – 109.
[5] Aqui mencionamos a anedótica e categórica passagem de William Park que “Like consummated romance, arbitration rests on consent”. PARK, William W. Non-signatories and International Arbitration: An Arbitrator’s Dilemma. In: Multiple Party Actions and International Arbitration. Nova York, Oxford University Press, 2009, p. 01.
[6] Nesse sentido, pondera Marcela Levy: “A questão que se põe é: se duas ou mais partes efetivamente assinaram o instrumento contendo a cláusula compromissória, se valendo de um formalismo que era dispensável, podem as partes que não respeitaram o mesmo formalismo, que integram o mesmo grupo das signatárias, ser consideradas como partes no procedimento? Pondera-se, nesse contexto, que a decisão de uma parte de não ser incluída como signatária em um contrato deve ser aceita como uma decisão consciente em não se vincular àquele ajuste (e, por conseguinte, à cláusula compromissória nele contida)”. LEVY, Marcela. Arbitragem, extensão da cláusula compromissória e grupo de empresas. In: MONTEIRO, Andre Luis; ADAMEK, Marcelo Vieira von; e CRAVEIRO, Mariana Conti. Arbitragem em Direito Societário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025, p. 67.
[7] A doutrina também tem debatido os limites subjetivos da cláusula compromissória, como nos casos de desconsideração da personalidade jurídica em arbitragens (ASSUMPÇÃO; PONZINI, 2022, p. 322 e ss.).
[8] Quanto à indicação conjunta de árbitros por partes do mesmo polo, destaca-se o “Dutco case” (Cour de Cassation, 1992), que suscitou discussões sobre igualdade na nomeação de árbitros e a possível nulidade da sentença. Para comentários detalhados, ver DELVOLVÉ (2014, p. 197-202).
[9] No âmbito da CCI, Webster e Buhler destacam as preocupações com o dever de informar sobre o financiamento de terceiros nos procedimentos arbitrais conduzidos pela instituição (WEBSTER; BUHLER, 2021, p. 214).
[10] No cenário das arbitragens domésticas, o CAM-CCBC se destaca pelo pioneirismo em prever a consolidação de procedimentos, ainda em regulamentos anteriores ao de 2012. Comentando essa versão, Frederico José Straube destaca que a Presidência da instituição pode determinar a consolidação quando houver identidade de partes e causa de pedir, desde que a decisão ocorra antes da assinatura dos Termos de Referência, evitando aumento artificial da complexidade da disputa. STRAUBE, Frederico José. Preface. In: STRAUBE, Frederico José; FINKELSTEIN, Cláudio; e FILHO, Napoleão Casado. (Orgs.). The CAM-CCBC Arbitration Rules 2012: A Commentary, Haia: Eleven International Publishing, 2016, pp. 11 – 13.