Entraves normativos da arbitragem tributária: uma breve análise
Entraves normativos da arbitragem tributária: uma breve análise do princípio da indisponibilidade do crédito tributário
Gabriel Bordignon Nogueira Silva[1]
Vitor de Lima Nogueira[2]
Com a adoção do Código de Processo Civil de 2015, percebe-se, já no artigo 3º, §3º, o incentivo à utilização de métodos consensuais de solução de conflitos promovido pelo ordenamento jurídico brasileiro no estado em que se encontra, além de que seu artigo 42 ressalva às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei.
Segundo o relatório Justiça em Números de 2024[3], a Justiça Federal registrou o ingresso, em 2023, de 163.014 (cento e sessenta e três mil e quatorze) processos de contribuições e contribuições sociais de natureza tributária, além de 96.078 (noventa e seis mil e setenta e oito) novas ações em curso relacionadas à dívida ativa, apenas no primeiro grau. Já na Justiça Estadual, o número de novos processos relativos à dívida ativa salta para 1.470.751 (um milhão, quatrocentos e setenta mil, setecentos e cinquenta e um). Estima-se que o tempo médio de tramitação dos processos de execução fiscal baixados naquele ano foi de 7 (sete) anos e 9 (nove) meses, enquanto o tempo médio de tramitação dos processos em geral, excluindo-se as execuções fiscais, foi de 3 (três) anos e 1 (um) mês.
Diante desse cenário, o estímulo a meios eficazes de resolução adequada de disputas é providência necessária ao descongestionamento do Poder Judiciário brasileiro, sendo a arbitragem, regulamentada pela Lei n.º 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), uma alternativa atrativa para que o fisco e contribuinte discutam lides tributárias de forma célere e efetiva.
No entanto, é necessário ressaltar que o que se executa nas execuções fiscais são créditos tributários, de natureza fiscal ou não-fiscal (isto é, aqueles que não são constituídos em função da verificação do fato gerador, como as multas), os quais, via de regra, são indisponíveis – excepcionando-se as hipóteses previstas no Código Tributário Nacional (CTN, L. 5.172/1966), como indica seu artigo 141[4] – sendo que, atualmente, a arbitragem utilizada por entes públicos para dirimir conflitos sobre direitos patrimoniais e disponíveis (possibilidade prevista no § 1º do artigo 1º da Lei de Arbitragem) é a que mais se aproxima do ideal de arbitragem tributária. Por ainda não estar devidamente regulamentada por lei, apesar de muito cativante, a ideia de utilizar a arbitragem no âmbito tributário encontra sérios entraves normativos/principiológicos: normativos, pois não há previsão legal; e principiológicos, pois frequentemente a doutrina obsta este pretenso instituto sob o argumento de que fere o princípio da indisponibilidade do crédito tributário[5].
Com vistas a regular a possível utilização da arbitragem no âmbito fiscal, o Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG) propôs o Projeto de Lei n.º 2.486/2022, que ainda tramita pelo Senado Federal[6]. Comparada aos Projetos de Lei n.º 4.257/2019[7] e n.º 4.468[8], que também visam a regulamentar a arbitragem tributária, essa é a proposta legislativa mais abrangente sobre o assunto. Ainda que algum desses projetos de lei venha a regular a matéria, o suposto ataque ao princípio supracitado não é resolvido, nem sequer abordado, por qualquer das propostas.
O grande impasse encontrado pelos doutrinadores[9] que já trataram do assunto da utilização da arbitragem no âmbito do direito tributário é a questão da indisponibilidade do crédito tributário, que tem relação direta com o princípio da indisponibilidade do interesse público. O princípio da indisponibilidade do interesse público significa, a seu turno, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“[…] sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que também é um dever – na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis” (2014, p. 76).[10]
Ainda nesta esteira, afirma o doutrinador que por esta razão os interesses públicos não se acham entregues à livre disposição de vontade da administração pública, mas confiados à sua guarda e realização, sendo a sua finalidade definida pela ordem legal, isto é, pela legislação[11].
Axiologicamente, o princípio da indisponibilidade do crédito tributário está intimamente relacionado com o da indisponibilidade do interesse público. Na doutrina de Mello (2014)[12], os interesses públicos podem ser divididos em primários e secundários. Os primários são aqueles interesses próprios da coletividade, sendo o resultado da soma dos interesses individuais dos integrantes da sociedade. Os secundários, a seu turno, são aqueles interesses do Estado instrumentais à realização do interesse público primário.
Um exemplo de interesse secundário é o próprio crédito tributário, que tem o fim de arrecadar recursos para a realização de interesses primários, por exemplo: o acesso à educação, saúde ou segurança. Segundo o autor, caso haja uma situação de conflito entre esses interesses, o primário deve sempre prevalecer sobre o secundário. Por isso, nestas hipóteses, pode-se dizer que é possível “abrir mão” do crédito tributário – o que lhe tornaria, na prática, disponível em certa medida.
O princípio da legalidade tributária é um dos princípios basilares deste ramo do direito, como o é o princípio da estrita legalidade ao direito administrativo, pois é por meio dele(s), segundo os doutrinadores destas áreas, que se concretiza o princípio da indisponibilidade do interesse público ou dos bens públicos (como se referem alguns). Esse princípio – da legalidade tributária – está positivado explicitamente no artigo 141[13] do CTN.
Em todo o ordenamento jurídico positivo, o mais próximo que se encontra de uma definição do princípio de “indisponibilidade do crédito tributário” é a definição do artigo citado. No entanto, o único princípio nele explicitado, como já mencionado, é o da legalidade. Sua previsão mais clara é a de que o crédito tributário somente se modifica ou se extingue nos casos previstos no código.
Os institutos da transação e da remissão tributária estão previstos nos artigos 171 e 172 da Lei n.º 5.172 (Código Tributário Nacional)[14]. Ambos consistem em hipóteses nas quais a administração pública, por meio de concessões ou do perdão da dívida tributária, pode abrir mão de parte ou do todo do crédito tributário, o que caracteriza disposição propriamente dita. Pela própria redação dos dispositivos, é possível inferir que o único princípio explicitado no texto da lei é o da legalidade, conforme as locuções “a lei pode facultar” ou “a lei pode autorizar” presentes nos caputs dos artigos mencionados.
A doutrina clássica do direito administrativo, representada por Mello (2014), previamente citado, e a do direito tributário, representada principalmente por Paulo de Barros Carvalho (2021)[15], reconhece que a indisponibilidade dos bens públicos (como o crédito tributário) está na observância do princípio da legalidade, segundo o qual o administrador público não pode agir conforme sua livre vontade, mas apenas segundo o que a lei expressamente autoriza e conforme os fins por ela impostos. Eis o que entende Carvalho quanto ao instituto da remissão, por exemplo: “No direito tributário brasileiro é forma extintiva da obrigação, se e somente se houver lei autorizadora. Está aqui, novamente, o primado da indisponibilidade dos bens públicos, que permeia intensamente todo o plexo das disposições tributárias”[16].
Se a indisponibilidade do interesse público – na qual se funda a indisponibilidade do crédito tributário – significa que os bens e direitos públicos não estão sujeitos aos desmandos do administrador público, conforme o ensinamento de Mello (2014), a legalidade seria, de fato, garantia de “indisponibilidade” do crédito tributário. Sentindo da mesma forma, Carvalho[17] diz que “o princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe seja necessária previsão normativa para que a autoridade competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que é da essência da transação”.
O que se percebe é que há uma vinculação da legalidade à indisponibilidade (dos bens públicos e, consequentemente, do crédito tributário). Não obstante, insta destacar que, muito embora este último autor mencione o princípio da indisponibilidade dos bens públicos ao se referir à legalidade, reconhece ele a possibilidade de a administração pública realizar “concessões mútuas”, dando azo ao entendimento que se pretende fundamentar.
Em conclusão, não sendo o crédito tributário absolutamente indisponível, ele é, por consectário lógico, disponível. Esta interpretação pode resolver eventuais conflitos interpretativos que possam se originar da leitura do § 1º do artigo 1º da Lei de Arbitragem, que somente permite à Administração Pública utilizar-se da arbitragem na resolução de conflitos que versem sobre direitos patrimoniais e disponíveis.
Se analisado fundamento legal que comumente se atribui ao princípio da indisponibilidade do crédito tributário – artigo 141 do CTN –, percebe-se que ele está muito mais próximo ao princípio da legalidade tributária. Assim, verifica-se que o crédito é, sim, disponível, estando adstrito às hipóteses previstas no CTN, protegido de liberalidades do administrador público.
[1] Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: gabrielbnsilvah@gmail.com.
[2] Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Mestrando no programa de mestrado acadêmico em Filosofia da UNIR. E-mail: vitorlino363@gmail.com.
[3] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em números 2024 / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2024.
[4]“Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias”.
[5] “Não é aceitável perante a Constituição que particulares, árbitros, como suposto no art. 11, III, possam solver contendas nas quais estejam em causa interesses concernentes a serviços públicos, os quais não se constituem em bens disponíveis, mas indisponíveis, coisas extra commercium. Tudo que diz respeito ao serviço público, portanto – condições de prestação, instrumentos jurídicos compostos em vista desse desiderato, recursos necessários para bem desempenhá-los, comprometimento destes mesmos recursos-, é questão que ultrapassa por completo o âmbito decisório de particulares (cf. n. 21). Envolve interesses de elevada estatura, pertinentes à Sociedade como um todo; e, bem por isto, quando suscitar algum quadro conflitivo entre partes, só pode ser soluto pelo Poder Judiciário. Permitir que simples árbitros disponham sobre matéria litigiosa que circunde um serviço público e que esteja, dessarte, com ele imbricada ofenderia o papel constitucional do serviço público e a própria dignidade que o envolve” (Mello, 2014, p. 812). MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.
[6] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154741. Acesso em: 27 jun. 2025.
[7] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137914. Acesso em: 27 jun. 2025.
[8] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144536. Acesso em: 27 jun. 2025.
[9] “O princípio jurídico e técnico da praticabilidade da tributação impõe um verdadeiro dever ao Legislador de busca dos caminhos de maior economia, eficiência e celeridade para viabilizar a imposição tributária, o que pode ser alcançado com intensificação da participação dos administrados na gestão tributária e possibilidade de solução extrajudicial de conflitos entre a Administração e os contribuintes. Contudo muitos são os obstáculos teóricos e culturais a superar, tendo em vista conceitos e valores que merecem novos sopesamentos, diante do atual quadro de evolução técnica dos ordenamentos e renovação científica da doutrina. Dentre todos, é o princípio da indisponibilidade do patrimônio público (tributo) o que maiores problemas de análise e de afetação comporta. O que vem a ser, precisamente, ‘indisponibilidade do crédito tributário’? O princípio da indisponibilidade do patrimônio público e, no caso em apreço, do crédito tributário, desde a ocorrência do fato jurídico tributário, firmou-se como dogma quase absoluto do direito de estados ocidentais, indiscutível e absoluto na sua formulação, a tal ponto que sequer a própria legalidade, seu fundamento, poderia dispor em contrário. E como o conceito de tributo, até hoje não definido satisfatoriamente, acompanha também essa indeterminação conceitual da sua indisponibilidade, avolumam-se as dificuldades para que a doutrina encontre rumo seguro na solução do problema. Porquanto ‘tributo’ e ‘indisponibilidade’ não sejam conceitos lógicos, mas sim conceitos de direito positivo, variáveis segundo a cultura de cada nação, próprios de cada ordenamento. Será o direito positivo a dar os contornos que queira denominar de ‘direito indisponível’, inclusive suas exceções (direito inalienável inter vivos, direito intransmitível [sic] mortis causa, direito irrenunciável, direito não penhorável etc.)” (Torres, 2003, p. 12-13 apud Escobar, 2019, p. 228, grifo nosso). ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem tributária no Brasil. São Paulo: Almedina, 2017.
[10] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 76.
[11] Idem, p. 77.
[12] Idem, p. 73.
[13] “Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias.”
[14] “Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.
[…]
Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário […]”.
[15] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021.
[16] Idem, p. 497.
[17] Idem, p. 496.