Inaplicabilidade do Código de Processo Civil à arbitragem: Breve análise do posicionamento do REsp 1.851.324/RS
INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À ARBITRAGEM: BREVE ANÁLISE DO POSICIONAMENTO DO REsp 1.851.324/RS
Luís Felipe de Paula Silva[1]
RESUMO
O artigo analisa a decisão do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no Recurso Especial n° 1.851.324/RS, que negou provimento à anulação de uma sentença arbitral devido à suposta violação das regras de suspeição e impedimento do Código de Processo Civil (“CPC”). O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (“TJRS”) entendeu que o procedimento arbitral não observou tais normas, que, segundo sua interpretação, deveriam ser aplicadas normas do CPC em caso de lacunas. Contudo, a arbitragem é regida pela autonomia das partes, conforme estabelecido na Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”), que permite que as partes definam seu próprio procedimento. A decisão do TJRS levanta importantes questões sobre o controle do Poder Judiciário sobre a sentença arbitral e a aplicabilidade do CPC. Essa decisão estabelece um precedente significativo para a segurança jurídica dos procedimentos arbitrais, ressaltando a flexibilidade e a eficácia do instituto como método de resolução de conflitos.
INTRODUÇÃO
Recentemente, foi objeto de julgamento do Superior Tribunal de Justiça o Recurso Especial n° 1.851.324/RS[2], interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que manteve sentença anulatória de sentença arbitral, sob o fundamento de que o procedimento teria deixado de observar as regras de suspeição e impedimento de auxiliares da justiça, previstas no art. 148 do Código de Processo Civil. No entanto, o STJ entendeu pela improcedência da ação anulatória de sentença arbitral, reformando a decisão anteriormente proferida pelo TJRS.
ANÁLISE DO JULGADO
Para iniciarmos a discussão, cabe salientar que a arbitragem é uma forma de resolução de conflitos regida, entre outros princípios, pela autonomia das partes, isto é, às partes é garantido total controle sobre o procedimento adotado, podendo convencionar regras que atendam às suas especificidades, conforme disposto no art. 2° da Lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem).
O procedimento arbitral é regido pela convenção firmada entre as partes, seja cláusula compromissória ou compromisso arbitral; pelo termo de arbitragem; pelo regulamento da câmara arbitral escolhida (ou eventual regramento eleito pelas partes, em casos de arbitragens ad hoc); e pelas determinações do árbitro (ou tribunal arbitral). Não há previsão, em qualquer diploma legal vigente, de que o árbitro deverá observar as regras previstas no CPC, ainda que subsidiariamente. Nos raríssimos casos em que o CPC se aplica ao procedimento arbitral, a Lei de Arbitragem os endereça expressamente, como acontece no art. 14 do referido diploma, sendo inadmissível qualquer outra hipótese.
No caso objeto de estudo, a parte vencida no procedimento arbitral pediu a anulação da sentença, sob o fundamento de que a atuação do preposto da parte contrária na função de tradutor das oitivas realizadas com duas testemunhas de nacionalidade chinesa configuraria violação às regras de suspeição e impedimento, estabelecidas no artigo 148 do CPC, para auxiliares da justiça.
O entendimento do TJRS, que resultou na interposição do Recurso Especial ora analisado, foi de que a sentença arbitral teria incorrido em violação às as regras de suspeição e impedimento previstas no CPC (artigo 148), ao permitir que o preposto de uma das partes agisse como tradutor de uma das testemunhas. De acordo com o TJRS, o CPC seria o diploma a ser utilizado para preencher as lacunas no procedimento arbitral, na medida em que o direito escolhido pelas partes é o brasileiro. A presente questão é recorrente objeto de controvérsia entre doutrinadores e operadores do direito. A decisão proferida pelo TJRS foi objeto de análise do STJ, em sede de Recurso Especial, tendo a corte se posicionado pela inaplicabilidade do CPC ao procedimento arbitral.
Como bem observado pelo ministro relator, as partes se incumbiram de disponibilizar tradutor para as testemunhas arroladas, razão pela qual não se poderia exigir que não haja vínculo prévio entre testemunha e tradutor, uma vez que a própria contratação do tradutor pressupõe uma relação contratual. Ademais, as partes teriam tido a oportunidade de impugnar a tradução, tanto em audiência de instrução, quanto posteriormente, quando contavam com a gravação e transcrição de todo o testemunho, e o deixaram de fazer[3].
O termo de arbitragem, aqui denominado como “Ata de Missão”, previa que o procedimento arbitral deveria ser regido com base no disposto na própria Ata de Missão, no Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (“CCI”) e, em caso de lacuna, por determinação do árbitro. Verifica-se, portanto, que não há qualquer previsibilidade, in casu, para a aplicação do CPC.
Já é de longa data o debate acerca da aplicabilidade do CPC e normas correlatas à arbitragem.
O instituto da arbitragem, ao assumir como norte o princípio da autonomia das partes, permite que estas renunciem à jurisdição estatal e busquem em sede privada a resolução de conflitos desejada.
Conforme disposto pela Lei de Arbitragem , em seu artigo 2°, as partes têm a liberdade de escolher não somente as regras procedimentais a serem utilizadas, mas também qual será a lei material que regerá o procedimento (inclusive permitir decisões por equidade), respeitadas as limitações estabelecidas pelos bons costumes e ordem pública.
Dispõe, também, em seu artigo 21[4], que a arbitragem terá de obedecer ao procedimento escolhido pelas partes, incumbindo ao árbitro o papel de disciplinar o procedimento quando não houver estipulação prévia e expressa. Ou seja, ainda que haja uma lacuna, é responsabilidade do árbitro preenchê-la, não cabendo recorrer à legislação processual civil[5]. Não há, na Lei de Arbitragem, ou em qualquer outra forma de legislação vigente, determinação ou sequer autorização genérica, a aplicação subsidiária do CPC ao procedimento arbitral. Todavia, ao preencher a lacuna, o árbitro deve observar as normas principiológicas dispostas na legislação infraconstitucional e os preceitos constitucionais.
CONCLUSÃO
A análise da decisão do Recurso Especial n° 1.851.324/RS revela, assim, a complexidade inerente à relação entre a arbitragem e o Código de Processo Civil, e a consequente inaplicabilidade deste nos procedimentos arbitrais, já que removeria do instituto uma de suas principais características que a diferem da prestação jurisdicional estatal: a flexibilização e personalização do procedimento.
O entendimento do TJRS, ao anular a sentença arbitral com base na suposta violação das regras de suspeição e impedimento, levanta questões relevantes sobre os limites da intervenção do Estado na autonomia das partes.
É importante considerar que a relação entre o tradutor e a testemunha, embora possa ser vista como um ponto de impugnação, não configura, por si só, um elemento que comprometa o procedimento, especialmente se as partes tiveram a oportunidade de contestar o testemunho e a tradução em momentos apropriados. A análise crítica da atuação do preposto e do tradutor deve ser feita com cautela, evitando-se extrapolar a relação de vínculo para uma suposta contaminação do ato arbitral.
A posição adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sugere uma interpretação que, se levada ao extremo, pode comprometer a essência da arbitragem, que é, em última análise, a heterocomposição e a flexibilidade no manejo dos conflitos, possibilitando que o procedimento seja ajustado para atender as necessidades e especificidades das partes. As partes, ao optarem por esta via, buscam um meio célere e efetivo de resolver suas disputas, afastando a jurisdição estatal e sua consequente morosidade.
Por fim, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ao rever a decisão do TJRS, reafirma a importância da autonomia das partes e a natureza distinta da arbitragem em relação ao processo judicial. Assim, a decisão estabelece precedentes importantes, reafirmando a autonomia da arbitragem e promovendo a segurança jurídica para as partes que optam por esse caminho.
REFERÊNCIAS
ALVIM, Eduardo Arruda; DANTAS, André Ribeiro. Direito processual arbitral: natureza processual da relação jurídica arbitral e incidência do Direito Constitucional Processual. In: Revista de Processo. 2014.
BRASIL. Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm Acesso em: 15 de outubro de 2024.
BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 15 de outubro de 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, (Terceira Turma). REsp n° 1.851.324/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgado em 21 de agosto de 2024.
FICHTNER, José Antônio; MANNHEIMER, Sérgio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense. 2019.
[1] Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (PUVR). Estagiário na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE RJ). Membro da Equipe de Estudos e Competição em Arbitragem (EArb – UFF/VR) e da Equipe de Direito e Processo Penal (EDPP – UFF/VR). Email: lfpaulasilva@id.uff.br
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, (Terceira Turma). REsp 1.851.324/RS, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgado em 21 de agosto de 2024.
[3] “As Partes teriam o prazo de 15 dias para apresentar eventuais documentos que se mostrem necessários e que tenham relação com os depoimentos prestados em audiência. Caso uma Parte apresentasse um novo documento, a outra Parte teria um prazo de 10 dias, contados do recebimento da via física do documento, para apresentar eventuais impugnações ou esclarecimentos que entenda necessários; (3) -Transcorridos os prazos acima indicados, o Árbitro emitiria uma Ordem Processual concedendo prazo de 15 (quinze) dias para a apresentação de Memoriais Finais pelas Partes. Concomitante aos Memoriais Finais, as Partes deveriam apresentar as despesas incorridas na arbitragem e que desejam que o Árbitro decida a quem incumbe suportá-las.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, (Terceira Turma). REsp 1.851.324/RS, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgado em 21 de agosto de 2024. p. 19)
[4] “Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, […] facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. § 1º Não havendo estipulação acerca do procedimento, caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo.”
[5] “No que tange ao procedimento arbitral, não há regra legal estabelecendo a aplicação do procedimento do diploma processual civil à arbitragem, o que afasta imposições nesse sentido. Em outras palavras, observados os limites impostos, partes e tribunal arbitral estão livres para fixar as regras do procedimento arbitral como melhor lhes parecer, sem que estejam obrigados a seguir, sequer subsidiariamente, o procedimento descrito no estatuto processual estatal.” (FICHTNER, José Antônio; MANNHEIMER, Sérgio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense. 2019. p. 58-60