Smart Contracts
Smart Contracts: um novo campo para a arbitragem
Leonardo Feres Montino(1), Luiz Gustavo Lopez Mide(2), Thais Helena Teixeira Tenani(3)
Inovações tecnológicas permitem às partes inovar na formalização e execução de seus negócios. Os smart contracts foram desenvolvidos neste cenário. São “contratos” automatizados, regidos por códigos e que dispensam a supervisão de terceiro. Disputas, contudo, podem – e devem – surgir. Este artigo discute a possibilidade de a arbitragem ser utilizada como mecanismo de resolução dessas controvérsias.
Desenvolvida em 2008, a tecnologia blockchain ganhou relevância especialmente no contexto das moedas digitais (ou criptomoedas). Conceitualmente, trata-se de sistema compartilhado e descentralizado entre diferentes pessoas que permite a realização de transações eletrônicas sem a necessidade da intermediação de terceiros(4), incluindo órgãos reguladores e o próprio governo.
Para além disso, esse sistema também se destaca por garantir a autenticidade e a integridade das operações e, após a devida validação, seu registro dentro de sua estrutura(5).
O conjunto de registros se organiza em uma cadeia de blocos(6), os quais são imutáveis. Quando a operação for validada para o sistema, esse evento estará inserido permanentemente na blockchain.
A crescente utilização de blockchain não parou nas transações envolvendo criptomoedas. Programadores passaram a explorar a tecnologia para variados usos, dentre os quais, por exemplo, o armazenamento de informações e execução de funções; dessa constante evolução decorre a criação dos smart contracts (“contratos inteligentes”).
Na prática, smart contracts são algo como “contratos”(7) regidos por uma linguagem computacional a qual permite o armazenamento de dados e, inclusive, sua autoexecução(8). Seu ponto central é justamente essa automaticidade, a qual pode ser traduzida na seguinte fórmula: “se isto, então aquilo” – isto é, se um evento predefinido ocorrer, então outro evento sucederá.
Para muitos, a natureza autoexecutória dos smart contracts eliminaria a existência de litígios entre as partes. Isso – principalmente – porque a tecnologia, como regra, garante o cumprimento do quanto acordado.
Essa suposição nos parece extremamente otimista e, talvez, afastada da realidade. Por exemplo, como ocorre com contratos propriamente ditos, negócios regidos por smart contracts também estão sujeitos a alegações de nulidade ou de vício de consentimento. Até mesmo sua função autoexecutória não impede o surgimento de eventuais litígios.
É o caso, por exemplo, de o resultado dessa autoexecução apresentar algum problema com relação, por exemplo, às partes ou mesmo à qualidade do “adimplemento” de uma das prestações regidas pela tecnologia.
Françoise Lefèvre e Nicolas Delwaide citam o seguinte exemplo: (1) Pessoa A quer comprar determinada bicicleta e o faz por meio de smart contract com Pessoa B. (2) O smart contract automaticamente transfere o valor da bicicleta ao vendedor (B) e o título de proprietário para o comprador (A). (3) Neste caso, não há como se garantir que a bicicleta não apresentará defeitos(9).
Esse exemplo não é o mais adequado ao caso brasileiro, no qual “a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição” (art. 1.267 do Código Civil), mas uma simples adaptação demonstra que a conclusão sobre a potencialidade de conflitos segue presente: se as mesmas pessoas A e B acertam a compra e venda da mesma bicicleta via smart contract e, com a entrega da bicicleta à pessoa A, operacionaliza-se a transferência do valor à pessoa B via autoexecução do smart contract, ainda assim nada impede que a bicicleta apresente algum defeito ou vício redibitório a justificar pretensão indenizatória da pessoa A contra a pessoa B.
Assim, autoexecutável ou não, conflitos podem surgir no ambiente dos smart contracts. Decorre disso a importância de se discutir quais métodos são adequados para a resolução de tais disputas.
Sob a legislação brasileira, não há muita dúvida quanto à possibilidade de conflitos envolvendo smart contracts serem levados ao crivo do Poder Judiciário – trata-se de consequência direta do princípio constitucional do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988). A possibilidade de utilização do mecanismo arbitral, por outro lado, demanda maiores considerações.
Numa primeira análise, não há impedimento na legislação brasileira de que controvérsias decorrentes de smart contracts sejam resolvidas por arbitragem. Dentre os pontos positivos dessa escolha, temos que a arbitragem (1) é conciliável com a estrutura descentralizada do sistema dos smart contracts – relembremos que o software e os usuários da blockchain não necessariamente estão sediados no mesmo lugar, algo que dificulta a definição da jurisdição –, (2) permite a escolha de julgadores com conhecimentos especializados, algo que pode se revelar importante para disputas envolvendo tecnologia tão inovadora, e (3) tem outras características positivas que podem ser bem-vistas para resolução desse tipo de disputa, como confidencialidade e certa flexibilidade.
Mas nem tudo são flores. Há desafios operacionais à vista, dentre os quais o fato de as partes desses smart contracts normalmente serem reconhecidas apenas por pseudônimos, sem maiores informações sobre suas qualificações. Isso impossibilitaria – ou ao menos dificultaria consideravelmente – a instauração da arbitragem. Além disso, por suas características e custos, a arbitragem é mais comumente utilizada em relações e transações comerciais complexas, as quais dificilmente conseguem se adequar à lógica de “se isto, então aquilo”, típicas de smart contracts.
Há também questionamentos decorrentes da legislação vigente. Um smart contract que inclua código para a instituição da arbitragem respeitaria a “estipulação por escrito” prevista no art. 4º, §1º, da Lei de Arbitragem? Ainda, restrições constantes da Lei de Arbitragem para cláusulas compromissórias em contratos de adesão são aplicáveis por analogia às cláusulas inseridas em smart contracts que estão disponíveis na blockchain, os quais podem, portanto, ser integrados por qualquer terceiro que não terá tido voz na elaboração daquele código?
Longe de haver uma resposta definitiva, parece-nos que programação é efetivamente uma forma de linguagem, de modo que a “fórmula” de um smart contract pode sim ser equiparada a um texto escrito. E, por via das dúvidas, é ideal atender às demais restrições impostas à utilização da arbitragem, como as regras para contratos de adesão.
Há, ainda, quem sugira que a arbitragem deva ser instituída na blockchain. Para isso, haveria na plataforma uma determinada autoridade responsável pela resolução de quaisquer disputas decorrentes dos smart contracts ali celebrados. A estrutura se assemelharia àquela presente no PayPal ou no eBay, nos quais as disputas entre o vendedor e o comprador se submetem ao sistema de resolução de conflito da própria plataforma. Não nos parece, contudo, que esse método alternativo para resolução de disputas seria final e definitivo. Ao menos sob a legislação brasileira, esse mecanismo não impediria ou restringiria o direito dos envolvidos de recorrerem ao Poder Judiciário.
Há muitas dúvidas e incertezas sobre a aplicabilidade dos métodos de resolução de disputas no contexto de novas tecnologias, como a blockchain e os smart contracts. Um esforço de evolução e adaptação será necessário, sobretudo pela real expectativa de que tais tecnologias estejam cada vez mais presentes no dia a dia. Não será diferente com a arbitragem, tanto que algumas instituições, como a JAMS, já estabeleceram regras aplicáveis a disputas envolvendo tais tecnologias(10).
(1) Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Advogado associado de Levy & Salomão Advogados.
(2) Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Especialista em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP. Advogado associado de Levy & Salomão Advogados.
(3) Mestre em Direito pela FGV Direito SP. Bacharel em Direito pela FGV Direito SP. Advogada associada ao Levy & Salomão Advogados.
(4) De, Fillippi, Privamera. Blockchain and the Law: The Rule of Code, Harvard University Press, 2018. ProQuest Ebook Central, p. 31. Disponível em: < http://ebookcentral.proquest.com/lib/uconn/detail.action?docID=5340266 >. Acesso em: 07 de abril de 2022.
(5) Idem, pp. 21-22.
(6) Idem p. 22.
(7) Subsiste relevante dúvida sobre smart contracts serem ou não formalmente contratos, sobretudo do ponto de vista jurídico. Esse é um debate profundo e interessante o qual, apesar de não ser objeto deste artigo, não passa desapercebido por seus autores.
(8) Idem, p. 74.
(9) Françoise Lefèvre and Nicolas Delwaide, ‘Resolving Smart Contracts’ Disputes Through Arbitration: Thoughts And Perspectives’, in Dirk De Meulemeester, Maxime Berlingin, et al. (eds), Liber Amicorum CEPANI (1969-2019): 50 Years of Solutions, (© Kluwer Law International; Wolters Kluwer 2019), pp. 223 – 237.
(10) JAMS. Smart Contract Clause and Rules (DRAFT). Disponível em: < https://www.jamsadr.com/rules-smart-contracts >. Acesso em: 07 de abril de 2022.