Administração Pública e eleição de lei estrangeira em arbitragem: o problema à luz do princípio da legalidade

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Administração Pública e eleição de lei estrangeira em arbitragem: o problema à luz do princípio da legalidade

Gabriel Mendes Francisco de Araújo[1] e Sophia Derenne Campos[2]

 

A arbitrabilidade de litígios que envolvem a Administração Pública experimentou consolidação gradual desde o advento da Lei de Arbitragem em 1996. Enquanto no início dos anos 2000 remanesciam os debates sobre a legalidade da participação de órgão públicos em procedimentos arbitrais, hoje cerca de 10% das arbitragens administradas pelas maiores 8 câmaras arbitrais do Brasil possuem a Fazenda Pública como parte, sendo certo que se estima um crescimento da ordem de 2,5% ao ano nesse número[3]. O status alcançado por controvérsias dessa natureza não tem o condão, entretanto, de fazer desaparecer todas as dúvidas a seu respeito. Disso são exemplo, a propósito, as indagações que ainda pairam sobre a eleição de direito estrangeiro para resolver o conflito fazendário.

Cumpre registrar, nesse sentido, que, dentre as figuras que assumem maior protagonismo em matéria de arbitragem envolvendo o Poder Público – ou apenas em relação a este último –, está o princípio da legalidade, segundo o qual “à Administração só é dado a fazer o que está em lei”[4]. Foi justamente com base nesse dado normativo, aliás, que parte da doutrina brasileira defendia a inaplicabilidade da arbitragem para a resolução de conflitos com a Fazenda, sobretudo porquanto, durante muito tempo, inexistiu autorização legislativa expressa que o permitisse. Tratar-se-ia, afinal, de “decorrência direta do princípio da legalidade [que] a Administração apenas poderá clausular arbitragem em seus ajustes se houve autorização legal”[5]. Sopesando o princípio da legalidade com aquele da eficácia, entretanto, acabou por prevalecer a corrente doutrinária cujo entendimento levava à conclusão de que impedir a submissão desse tipo de causa a juízo arbitral vulneraria o interesse público.

Mais adiante, o princípio da legalidade foi igualmente importante no contexto das discussões acerca da possibilidade de julgamento por equidade em arbitragens com a Administração. É que, nada obstante diferentes ordenamentos estrangeiros admitissem – como ainda admitem – procedimentos arbitrais ex aequo et bono[6] nessas hipóteses, a maior parte dos estudos em arbitragem a nível nacional encampava a tese contrária. Entendia-se, nesse particular, que o julgamento por equidade constituiria “violação flagrante ao princípio da legalidade”[7], eis que a atuação do Estado há de ser pautada necessariamente por lei. Venceu desta feita o posicionamento mais estrito: antes mesmo de operar-se a reforma da Lei de Arbitragem, a vedação à equidade em arbitragens nas quais o Poder Público fosse parte já havia sido acolhida por uma séria de atos normativos esparsos, como a Nova Lei dos Portos (Decreto nº 8.465/2015), a Lei Mineira de Arbitragem e o Decreto nº 46.245/2018 do Estado do Rio de Janeiro.

Nesse caminhar, a promulgação da Lei Federal nº 13.129/2015 nada mais significou do que a cristalização de duas posições amplamente difundidas àquela altura. Se, por um lado, autorizou de forma taxativa o emprego da arbitragem pela Administração Pública (art. 1, §1º); por outro, impôs a exigência de que esses procedimentos fossem decididos sempre por direito, e não por equidade (art. 2º, §3º). Permaneceu silente, contudo, no que diz com uma terceira questão tão relevante quanto às demais: poderia a Fazenda submeter-se a arbitragem regida por direito estrangeiro? Ao que tudo indica, a dúvida está longe de encontrar resposta pacífica na doutrina.

Os partidários do afastamento de lei estrangeira em casos como tal sustentam que a opção “depende de prévia lei específica”[8] à luz – uma vez mais – do princípio da legalidade. Segundo Carlos Alberto de Salles, vigeria até eventual edição de dita lei a “indisponibilidade normativa”[9] dos entes públicos. Sob esse regime, “à Administração é vedado optar pela adoção de lei material outra que não a brasileira”[10], pelo que, na prática, a exigência de submeter conflitos envolvendo o Poder Público ao direito coincidiria com o dever de submetê-los especificamente ao direito brasileiro.

Em sentido oposto, Lauro Gama Jr. afirma que nos casos de arbitragem internacional “parece não haver lugar para a vedação, a priori, da aplicação eventual das regras de direito estrangeiro ou internacional”[11]. Já nas palavras de José Antonio Fitchner, Sergio Mannheimer e André Monteiro, “o princípio da legalidade exige, segundo nos parece, que a Administração Pública se submeta a uma regra de Direito positivo”, daí não decorrendo necessariamente a aplicação do direito positivo brasileiro[12].

Diante do evidente dissenso doutrinário e do silêncio da Lei de Arbitragem, assim, restou aos entes federativos legislar por conta própria sobre o tema. A Nova Lei dos Portos e o Decreto nº 46.245/2018 do Estado do Rio de Janeiro determinam ambos que a lei de regência escolhida em procedimentos arbitrais envolvendo o Poder Público seja obrigatoriamente a brasileira. No mais, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entendeu ser um “atentado à soberania quedar-se o componente da Federação genuflexo às leis alienígenas”, por ocasião do julgamento sobre a validade de cláusula compromissória contida em contrato administrativo celebrado entre o Museu Guggenheim e o Estado do Rio de Janeiro, a teor do que o contrato seria regido pelas leis do Estado de Nova Iorque[13]. O julgamento desse caso isolado não é suficiente, entretanto, para falar-se em tendência jurisprudencial, de modo que no âmbito do Poder Judiciário a questão segue também carente de resposta definitiva.

Embora seja legítimo que atos locais ou setoriais vedem a submissão de certos procedimentos arbitrais à legislação estrangeira, não parece razoável tolher de forma ampla e geral, sob pretexto de salvaguarda do princípio da legalidade, a autonomia do Poder Público para eleger corpo normativo diverso do brasileiro como regente de suas controvérsias. É que esse princípio – cuja gênese remonta à Revolução Francesa – tem por razão de ser a submissão do poder estatal à égide da lei, fazendo-lhe observar o Estado Democrático de Direito. E a escolha de direito estrangeiro para reger disputas que tratem de direitos disponíveis não chega a vulnerar o estado de coisas constitucional. Ademais, proibir o Poder Público de optar por lei diversa da brasileira limita suas possibilidades enquanto parte contratante, sobretudo no contexto internacional, privando-lhe da escolha do corpo de normas mais adequado para cada situação. Daí porque fazê-lo seria avesso ao princípio do interesse público, pois poria a Administração em posição desfavorável em comparação com entes privados e limitaria sua atuação como player relevante no exterior.

[1] Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado associado de Mannheimer, Perez e Lyra Advogados.

[2] Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogada associada de Mannheimer, Perez e Lyra Advogados.

[3] É o quanto constou do último relatório “Arbitragem em números”, fruto de pesquisas conduzidas por Selma Ferreira Lemes em conjunto com o Canal de Arbitragem. Disponível em: <https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PESQUISA-2023-1010-0000.pdf>. Acesso: 16.10.2024.

[4] FERRAZ, Rafaella. Arbitragem em litígios comerciais com a administração pública: exame a partir da principialização do direito administrativo. Porto Alegre: Editora Sergio Fabris, 2008, p. 26.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Sociedade de economia mista prestadora de serviço público. Cláusula arbitral inserida em contrato sem prévia autorização legal. Invalidade. In Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem. 2003, v. 19, p. 415-439.

[6] A propósito, a ICSID Convention de 1965 estabelece em seu item 2, art. 42, que “the provisions in paragraphs (1) and (2) shall not prejudice the power of the Tribunal to decide a dispute ex aequo et bono if the parties so agree”.

[7] PINTO, José Emilio Nunes. A arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o estado e empresas estatais. In: Revista Brasileira de Arbitragem, 2004, v. 1, p.21.

[8] TIBURCIO, Carmen; PIRES, Thiago Magalhães. Arbitragem envolvendo a administração pública: notas sobre as alterações introduzidas pela Lei nº 13.129/2005. Revista de Processo, 2016, v. 41, p. 431-462.

[9] SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem em contratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 265.

[10] ZIMMERMANN, Dennys. Alguns aspectos sobre a arbitragem nos contratos administrativo à luz dos princípios da eficiência e do acesso à justiça: por uma nova concepção do que seja interesse pública. In: Revista de Arbitragem e Mediação, 2007, v. 12, p. 69-93.

[11] GAMA, Lauro. Sinal verde para a arbitragem nas parcerias público-privadas (a construção de um novo paradigma para os contratos entre o estado e o investidor privado). Revista Brasileira de Arbitragem, 2005, v. 8, p. 36.

[12] FICHTNER, José Antônio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 585.

[13] TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0005615-64.2003.8.19.000013ª Câmara Cível, Des. Ademir Paulo Pimentel, j. 29.10.2002.

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