Uso dos métodos autocompositivos nos processos de Recuperação Judicial: Modificação da Lei n. 11.101/2005

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USO DOS MÉTODOS AUTOCOMPOSITIVOS NOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL: MODIFICAÇÃO DA LEI N° 11.101/2005

Rafael Hansen Lenzi[1]

Silvia Roberta Reis Resstel[2]

 

A recuperação judicial consiste em procedimento complexo, de longa duração e com intensos conflitos – afinal, é uma disputa entre um devedor e variados credores de diferentes classes, que pretendem privilegiar seus interesses em detrimento dos demais.[3] Como se não bastasse, em muitos casos, os credores finalizam o processo recuperacional com insatisfação, visto que recebem valores muito menores do que os inicialmente devidos em razão de deságios promovidos no plano de recuperação judicial.[4] Por exemplo, dados da Associação Brasileira de Jurimetria indicam que o tempo médio até que se ocorra, na recuperação judicial, a primeira Assembleia Geral de Credores é de 327 dias nas varas especializadas, e de 456 nas varas comuns,[5] isto é, se está diante de processo devagar e maçante, seja para o devedor, seja para seus credores. Além disso, não são raros os casos de deságios superiores à 70%.[6]

Nesse sentido, visando modernizar a recuperação judicial no país, a Lei n° 14.112/2020 atualizou diversos dispositivos presentes na Lei de Recuperações Judiciais e Falências (Lei nº 11.101/2005), incluindo, dentre eles, o incentivo à utilização de métodos autocompositivos – expressamente a mediação e a conciliação – em qualquer grau de jurisdição, incidente ou antecedente ao processo recuperacional vivenciado pela empresa em crise.[7] Mais do que isso: conferiu ao administrador judicial o dever de estimular a utilização destes e de outros métodos alternativos de solução de conflitos durante os processos de recuperação judicial e falência.[8]

Assim, conforme dispõe o art. 20-B da Lei de Recuperações Judiciais e Falências,[9] possibilita-se o uso de mediações e conciliações durante o processo recuperacional em, notadamente:

  1. disputas envolvendo sócios e acionistas da empresa em recuperação judicial ou em crise financeira, bem como credores não sujeitos à recuperação judicial ou credores extraconcursais;
  2. conflitos envolvendo concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos;
  3. situações nas quais existam créditos extraconcursais contra empresas recuperandas durante vigência do estado de calamidade pública para a continuidade da prestação de serviços essenciais; e
  4. hipótese de negociação de dívidas e formas de pagamento com os credores, em momento anterior ao ajuizamento do pedido recuperacional.

Para além de possibilitar a autocomposição entre as (possíveis) partes em um processo de recuperação judicial, tais dispositivos legais são fundamentais para a manutenção da atividade empresarial, uma vez que, conforme o § 1° do artigo 20-B da Lei n° 11.101/2005,[10] o devedor pode, antes mesmo de requerer recuperação judicial, pleitear tutela de urgência cautelar com o intuito de suspender as execuções propostas em face dele pelo prazo de 60 dias – utilizando-se do referido prazo para negociar com seus credores em mediação ou conciliação já instaurada. Com isso, a mediação prévia ganha importante status na tentativa de soerguimento da empresa em crise; afinal, permite que o devedor obtenha o stay period antes mesmo do deferimento do processamento de sua recuperação judicial.

Torna-se, portanto, uma oportunidade negocial única à empresa em crise, na medida em que possibilita ao devedor negociar com seus credores sem vivenciar, por 60 dias, a pressão de execuções e atos constritivos direcionados ao seu patrimônio, antes mesmo de ingressar com seu pedido de recuperação judicial. E mais do que isso, a mediação e a conciliação prévias passam a ser importantes métodos a serem utilizados com o objetivo de reduzir demandas judiciais que versem a respeito da recuperação judicial, dado o fato de que o devedor – antes mesmo de figurar enquanto empresa recuperanda – pode iniciar negociações e tratativas (realizadas até mesmo por meio virtual)[11] que, caso bem-sucedidas, não direcionarão a empresa a um moroso processo recuperacional, mas a acordo que deverá ser homologado pelo juízo competente.[12]

Ainda, dá-se ao credor a possibilidade de negociação em âmbito menos beligerante que a assembleia geral de credores, em janela prévia à concursalidade, sem retirar quaisquer garantias ou beneficiar em excesso a empresa em crise. Afinal, prevê-se que o período de suspensão será posteriormente deduzido do stay period previsto no art. 6º da Lei de Recuperações Judiciais e Falências.[13] Ainda, os métodos alternativos de solução de conflitos não poderão definir natureza jurídica dos créditos, sua classificação e os critérios de voto na assembleia-geral de credores,[14] bem como sua utilização não implica automaticamente a suspensão dos prazos previstos na Lei de Recuperações Judiciais e Falências,[15] impedindo que seu uso retarde o processo. Por fim, caso a empresa em crise requeira a recuperação judicial ou extrajudicial em até 360 dias após o acordo firmado previamente por meio de mediação ou conciliação, o credor terá reconstituídos seus direitos e garantias nas condições originalmente contratadas,[16] impossibilitando que ele saia prejudicado ao utilizar a autocomposição prévia à recuperação judicial.

A utilização de métodos autocompositivos na recuperação judicial, embora recente, veio antes mesmo da reforma da Lei nº 11.101/2005. Em 2020, a Oi S.A. realizou mediação com todos os credores que aceitassem o recebimento de até 50 mil reais, o que desafogou seu processo recuperacional ao satisfazer o crédito de diversos credores trabalhistas.[17][18]A ideia de realizar o procedimento de pagamento de credores de forma mais célere e menos litigiosa vai ao encontro dos possíveis benefícios da mediação, quais sejam “a privacidade; a escolha do mediador pelas partes; reflete as preocupações e as prioridades das disputas; é flexível; trata o conflito; busca-se soluções criativas; registra alta taxa de cumprimento das decisões; é relativamente barato”.[19]

Nessa linha, embora o imaginário popular relacione o uso de métodos autocompositivos à solução de pequenos conflitos, assinala-se que estes também podem ser utilizados na recuperação judicial de empresas de médio e grande porte, ainda que limitados a credores de montantes menos expressivos.

Ademais, a título de exemplo, cita-se a pesquisa realizada pela mediadora judicial Marina Soares Vital Borges, gestora do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Os dados apresentados foram otimistas: de 93 audiências de conciliação realizadas em sessões pré-processuais, houve acordo em 72 delas.[20] Com o alto índice de acordo em casos gerais (77,4%), acredita-se que importação de métodos autocompositivos seja alternativa viável para evitar a morosidade dos processos recuperacionais.

Assim, na medida em que as possíveis vantagens da mediação (e da conciliação) colaborariam com as negociações realizadas entre uma empresa em crise financeira e seus credores, antes ou durante o processo recuperacional, espera-se que o incentivo legal seja o estopim para sua maior utilização em processos de recuperação judicial, independentemente do tamanho da empresa credora.

 

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA. Observatório da Insolvência, processos de recuperação judicial em São Paulo. 11 de julho de 2022. Disponível em: https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/obs_recuperacoes_abj.pdf. Acesso em: 21 de junho de 2024.

BRASIL. Lei nº. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 21 de junho de 2024.

BRASIL. Lei nº. 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera as Leis n os 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, 10.522, de 19 de julho de 2002, e 8.929, de 22 de agosto de 1994, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14112.htm. Acesso em: 21 de junho de 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estudos apresentam dados sobre eficiência do uso mediação e conciliação na Justiça. 9 de junho de 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/estudos-apresentam-dados-sobre-eficiencia-do-uso-mediacao-e-conciliacao-na-justica-brasileira/. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

CORRÊA. Raphael Nehin. Voto abusivo do credor ou abuso de direito do devedor? Uma análise crítica sobre a preservação da empresa economicamente viável em contraponto à preservação dos interesses do empresário (acionista controlador). Revista de Direito Recuperacional e Empresa, vol. 6, out-dez 2017.

MARIANO, Álvaro A. C. Abuso de Voto na Recuperação Judicial. 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e Mediação de Conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

[1] Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Coach da Equipe USP na Competição Brasileira de Arbitragem e no Willem C. Vis Moot. Advogado em São Paulo. E-mail para contato: rafael.lenzi@conticraveiro.adv.br.

[2] Graduanda em Direito pela Universidade de São Paulo. Estagiária nas áreas de contencioso estratégico e arbitragem no Tannuri Advogados. E-mail para contato: silviaresstel@usp.br.

[3] MARIANO, Álvaro A. C. Abuso de Voto na Recuperação Judicial. 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, pp. 203/204.

[4] CORRÊA. Raphael Nehin. Voto abusivo do credor ou abuso de direito do devedor? Uma análise crítica sobre a preservação da empresa economicamente viável em contraponto à preservação dos interesses do empresário (acionista controlador). Revista de Direito Recuperacional e Empresa, vol. 6, out-dez 2017.

[5] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA. Observatório da Insolvência, processos de recuperação judicial em São Paulo. 11 de julho de 2022. Disponível em: https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/obs_recuperacoes_abj.pdf. Acesso em: 21 de junho de 2024.

[6] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA. Observatório da Insolvência, processos de recuperação judicial em São Paulo. 11 de julho de 2022. Disponível em: https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/obs_recuperacoes_abj.pdf. Acesso em: 21 de junho de 2024.

[7] Arts. 20-A, 20-B, 20-C e 20-D da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[8] Art. 22, inc. I, “j”, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[9] Art. 20-B da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[10] Art. 20-B, § 1º, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[11] Art. 20-D, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[12] Art. 20-C da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[13] Art. 20-B, § 3º, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[14] Art. 20-B, § 2º, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[15] Art. 20-A da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[16] Art. 20-C, par. único, da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

[17] Conforme consulta ao Plano de Mediação do Grupo Oi, apresentado nos autos do processo n° 0203711-65.2016.8.19.0001, perante a 7ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro.

[18] Cita-se, na esteira da compatibilidade da recuperação judicial com os métodos autocompositivos o Enunciado n° 45 aprovado na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho de Justiça Federal: “a mediação e conciliação são compatíveis com a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, bem como em casos de superendividamento, observadas as restrições legais.”

[19] SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e Mediação de Conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 72-73

[20] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estudos apresentam dados sobre eficiência do uso mediação e conciliação na Justiça. 9 de junho de 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/estudos-apresentam-dados-sobre-eficiencia-do-uso-mediacao-e-conciliacao-na-justica-brasileira/. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

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