A Sistematização do dever de revelação dos árbitros como garantia à segurança jurídica na arbitragem basileira
A SISTEMATIZAÇÃO DO DEVER DE REVELAÇÃO DOS ÁRBITROS COMO GARANTIA À SEGURANÇA JURÍDICA NA ARBITRAGEM BRASILEIRA.
Giovanna Enes Costa[1]
Karolyne Souza Procópio[2]
Vitor de Lima Nogueira[3]
1. INTRODUÇÃO.
A arbitragem é um método de resolução de disputas que se destaca pela autonomia das partes. Nesse contexto, a escolha dos árbitros que comporão o tribunal arbitral é essencial para garantir a continuidade e a credibilidade do processo. A confiança das partes nos árbitros é fundamental, pois sua perda compromete a imagem da arbitragem como um meio confiável de exercer a jurisdição.
A Lei n. 9.307/1996 (Lei da Arbitragem ou LArb)[4], estabelece os requisitos legais que uma pessoa, indicada a cumprir a função de árbitro, deve respeitar. Em observância, às instituições de arbitragem publicaram diretrizes sobre o dever de revelação dos árbitros, as quais são amplamente utilizadas para analisar a violação do dever de revelação como fator de desqualificação do árbitro.
2. A SISTEMATIZAÇÃO DO DEVER DE REVELAÇÃO DOS ÁRBITROS.
Na LArb, o art. 13, §6º dispõe que além do árbitro precisar ter a confiança das partes, ele também deve proceder com imparcialidade, independência, diligência e discrição. Essa matéria também está condicionada ao primeiro princípio geral das Diretrizes da IBA.
Além disso, o art. 14, §1º da LArb estabelece que: “As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”. Porém, a Diretriz n. 2 do CBAr[5] dispõe que o dever de revelação do árbitro permanece durante todo o curso do processo arbitral, até o esgotamento da jurisdição do árbitro.
Impõe-se aos árbitros o dever de revelar qualquer relação ou dúvida justificada quanto à partes ou preconcepções sobre o caso que possam interferir na concretização da garantia constitucional ao devido processo legal. No entanto, é perfeitamente normal que o árbitro, principalmente se ele for um profissional do direito, já tenha tido contato com as partes do litígio, seus advogados, ou com a matéria do caso.
Dessa forma, a impugnação de um árbitro se dá quando demonstrada a falta da imparcialidade e da independência dele. Nem toda omissão irá configurar a ausência desses critérios, e a falta de competência do árbitro(s). Essa afirmação pode ser encontrada tanto na versão atual das Diretrizes da IBA[6], quanto na Diretriz n. 3 do CBAr.
Basicamente, as duas diretrizes dispõem que eventual omissão durante o exercício da função de árbitro não necessariamente implica na parcialidade ou na falta de independência, e, se houver uma alegação de tal fato, esta deve ser aferida à luz da natureza e do fato não revelado, respeitada a razoabilidade da questão.
Assim, entende-se que nem toda relação entre árbitro e partes de um litígio será levada à desconsideração de um árbitro, e por isso, as diretrizes passam a atuar como recomendações com o objetivo de auxiliar as partes, árbitros e advogados, instituições arbitrais, etc., antes ou após a arbitragem, no tratamento de questões relacionadas ao dever de revelação (Diretriz n. 1 do CBAr).
3. A IMPORTÂNCIA DA SEGURANÇA JURÍDICA DA ARBITRAGEM NO BRASIL
A segurança jurídica é fundamental para garantir estabilidade e confiança no sistema legal, assegurando que as normas vigentes sejam aplicadas sem ofensa à ordem pública. Esses aspectos criam um ambiente de confiança nas relações jurídicas, especialmente na arbitragem, já que a exequibilidade de sentença arbitral é o que garante um resultado frutífero e seguro aos envolvidos.
O dever de revelação e imparcialidade dos árbitros têm sua a temática delineada na LArb em seus artigos 14, §1º, artigo 13, § 6° e artigo 21, §2º. Em linhas gerais, os dispositivos supramencionados ressaltam a importância do dever de revelação, imparcialidade e independência dos árbitros, com intuito de garantir a imparcialidade, equidade e igualdade entres as partes no procedimento arbitral.
Selma Lemes (1992)[7] explica a imparcialidade do árbitro como essencial para a validade do procedimento arbitral, pois o árbitro, ao se posicionar entre as partes de forma equilibrada, assume uma função equiparada à de um juiz. Somente um juízo arbitral livre de influências externas pode assegurar um julgamento justo, sendo a imparcialidade do árbitro fundamental para que a arbitragem não seja apenas um meio técnico, mas também ético, para a resolução de disputas.
Embora o dever de revelação dos árbitros seja basilar na garantia da segurança jurídica do procedimento, as ações anulatórias de sentenças arbitrais com base na violação desse dever possuem caráter excepcional. Conforme o artigo 32, II, da LArb uma sentença arbitral pode ser anulada caso seja comprovada a parcialidade do árbitro, sobretudo, quando há omissão de informações relevantes que comprometam sua neutralidade.
As ações anulatórias são admitidas quando a falha no dever de revelação for significativa, afetando de forma substancial a imparcialidade do árbitro. Contudo, pequenas omissões que não impactem, sobre a neutralidade, não são suficientes para anular a sentença. Giza-se que a jurisprudência pátria tem adotado postura cautelosa, buscando equilibrar a proteção da imparcialidade com a efetividade e validade das decisões arbitrais.
4. PRECEDENTES DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO.
Devido ao espaço deixado para interpretações na LArb, coube à comunidade jurídica elucidação de como o dever de revelação seria exercido. Embora ainda haja debates sobre esse tema que se mostra longe de ter sua discussão esgotada, é possível perceber uma construção sólida acerca do que é imprescindível que um árbitro revele. Essa construção é fruto de debate doutrinário e é pautado nos precedentes.
Acerca dos precedentes judiciais, Nunes (2021)[8] ressalta que o árbitro não possui uma vinculação automática a eles. Ainda assim, eles se caracterizam como uma fonte do direito a ser aplicada na disputa, portanto, o árbitro deve observá-los a fim de evitar possíveis impugnações de sentença arbitral. Destaca-se que esse entendimento não é uniforme, existem autores que defendem a autonomia absoluta do árbitro.
Um caso que se tornou paradigma sobre o tema foi a Sentença Estrangeira Contestada nº 9.412, julgada em 2017[9]. Nessa sentença, ASA Bioenergy Holding A.G., uma sociedade constituída conforme as leis suíças, juntamente com Abengoa Bioenergia Agrícola Ltda, Abengoa Bioenergia São João Ltda, Abengoa Bioenergia São Luiz Ltda e Abengoa Bioenergia Santa Fé Ltda, todas estabelecidas segundo as leis brasileiras, pleiteavam a homologação de duas sentenças arbitrais estrangeiras (CCI n. 16.176 e CCI n. 16.513), proferidas com o uso do Regulamento de Arbitragem da Câmara Internacional do Comércio.
As decisões foram proferidas em desfavor das requeridas. De acordo com o pedido, a ASA Bioenergy Holding A.G. celebrou um contrato de compra e venda de quotas (SPA) com Adriano Giannetti Dedini Ometto, pelo qual este se comprometeu a transferir o controle do Grupo Dedini Agro (GDA) para a requerente. Essa transferência incluía a propriedade de usinas produtoras de açúcar e etanol localizadas no Estado de São Paulo.
Scótolo (2023)[10] explica que o ponto central da controvérsia sobre a homologação residia no fato de que, durante o curso da arbitragem, o escritório Debevoise & Plimpton LLP, do qual o árbitro presidente, David Rivkin, era sócio sênior, havia recebido da empresa Abengoa Solar um total de US$ 6,5 milhões em honorários, dos quais Rivkin obteve uma parcela proporcional. Apesar do valor significativo, esse fato não foi revelado por Rivkin.
Para se justificar, Rivkin alegou que os honorários se referiam à assessoria prestada ao Departamento de Energia dos Estados Unidos na estruturação de investimentos em dois projetos de energia solar do grupo Abengoa, avaliados em US$ 5 bilhões. As requerentes reforçaram que o escritório de Rivkin não havia prestado assessoria direta às empresas do grupo Abengoa, mas sim ao Departamento de Energia dos Estados Unidos, o que justificava os pagamentos.
As requeridas recorreram na Justiça Federal norte-americana, e esta entendeu que não haveria provas suficientes que comprovem a parcialidade do árbitro. No Brasil, o STJ entendeu de forma divergente, como é possível deduzir no voto do ministro João Otávio de Noronha. Ele estabeleceu que a imparcialidade do julgador é uma garantia fundamental que decorre do devido processo legal, aplicável também à arbitragem em razão de sua natureza jurisdicional. A violação dessa imparcialidade fere diretamente a ordem pública nacional. Ademais, a renúncia à jurisdição estatal só é válida quando os árbitros atuam com independência e são dignos da confiança das partes.
Logo, a decisão da Justiça Federal americana, baseada em sua própria legislação, não impediu o Superior Tribunal de Justiça de examinar uma possível ofensa à ordem pública brasileira. Assim, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a parcialidade do árbitro, inferida no descumprimento do dever de revelação, ofenderia a ordem pública, então, sendo improvida a homologação de sentença.
5. CONCLUSÃO.
Conclui-se que, apesar da Legislação não estabelecer limites objetivos sobre o conteúdo da revelação do árbitro, a segurança jurídica da arbitragem segue resguardada. Ademais, a arbitragem tem se consolidado no Brasil como um meio eficiente para resolução de conflitos que promove a confiança das partes no procedimento arbitral. Isso se deve ao fato de que os tribunais pátrios têm proferido decisões que esclarecem essa questão, além disso, com o apoio das diretrizes da CBAr e da IBA, que oferecem parâmetros adicionais que complementam a legislação, reforçando o dever contínuo de revelação ao longo de todo o procedimento arbitral.
REFERÊNCIAS.
BAQUEDANO, Luis Felipe Ferreira. PEDROSO, Luiza Romanó. A violação do dever de revelação enquanto fundamento para a impugnação do árbitro: Onde há fumaça há fogo?. Revista Brasileira de Arbitragem, n. 60, out/dez. 2018.
BRASIL. [LArb (1996)]. Lei de Arbitragem Brasileira. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em: 17 out. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Sentença Estrangeira Contestada Nº 9.41 – US (2013/0278872-5). Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras. Apreciação do mérito. Impossibilidade, salvo se configurada ofensa à ordem pública. Alegação de parcialidade do árbitro. Pressuposto de validade da decisão. Ação anulatória proposta no Estado Americano onde instaurado o tribunal arbitral. Vinculação do STJ à decisão da justiça Americana. Não ocorrência. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201302788725&dt_publicacao=30/05/2017. Acesso em: 12 dez. 2024
Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional. Conselho da IBA. 23 de outubro de 2014. Disponível em: https://www.ibanet.org/MediaHandler?id=EB37DA96-F98E-4746-A019-61841CE4054C. Acesso em: 18 out. 2024.
Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do(a) Árbitro(a). Comitê Brasileiro de Arbitragem, São Paulo. Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/. Acesso em: 18 out. 2024.
LEMES, Selma Ferreira. MARTINS, Pedro A. Batista. CARMONA, Carlos Alberto. Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do(a) Árbitro(a). Disponível em: https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2024/03/diretrizes-do-cbar-lemes-martins-carmona.pdf. Acesso em: 19 out. 2024.
LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem. Princípios Jurídicos Fundamentais. Direito Brasileiro e Comparado. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 115, p. 441-468, jul./set. 1992, 07/1992. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/176007. Acesso em: 21 out. 2024.
NUNES, Thiago Marinho. Árbitro e precedentes judiciais: vinculação ou observância? Migalhas, São Paulo, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/339419/arbitro-e-precedentes-judiciais-vinculacao-ou-observancia. Acesso em: 19 out. 2024.
SCÓTOLO, Isadora Cardoso. A imparcialidade do árbitro como matéria de ordem pública na jurisprudência brasileira. Florianópolis, 2023. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/253816/A%20imparcialidade%20do%20%c3%a1rbitro%20como%20mat%c3%a9ria%20de%20ordem%20p%c3%bablica%20na%20jurisprud%c3%aancia%20brasileira_vf.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 21 out. 2024.
[1] Acadêmica de Direito pela Universidade Federal de Rondônia.
[2] Acadêmica de Direito pela Universidade Federal de Rondônia.
[3] Bacharel em Direito e Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Rondônia.
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm
[5]Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/
[7] LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem. Princípios Jurídicos Fundamentais. Direito Brasileiro e Comparado. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 115, p. 441-468, jul./set. 1992, 07/1992.
[8] NUNES, Thiago Marinho. Árbitro e precedentes judiciais: vinculação ou observância? Migalhas, São Paulo, 26 jan. 2021.
[9] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201302788725&dt_publicacao=30/05/2017
[10] SCÓTOLO, Isadora Cardoso. A imparcialidade do árbitro como matéria de ordem pública na jurisprudência brasileira. Florianópolis, 2023.