A tecnologia e o acesso à justiça
Entre Tecnologias Disruptivas, Mediação e Online Dispute Resolution
Adrícia Rocha Ferreira[1]
- Direito e tecnologia
Antes consideradas grandes obstáculos, as longas distâncias e as fronteiras geográficas deixaram de ser uma preocupação a partir do desenvolvimento da tecnologia e da internet. No ambiente virtual, esses obstáculos são inexistentes. Impulsionados pelos avanços tecnológicos, países de todo o mundo se aproximam de forma inédita, desestabilizando conceitos tradicionais como soberania e jurisdição, exigindo, portanto, soluções não convencionais para os conflitos decorrentes[2].
Diante de tantos avanços em curtos períodos de tempo, afirma Albornoz que “não é de se estranhar que o direito geralmente vá um passo atrás da tecnologia”[3]. O constante surgimento de novas realidades sociais vinculadas à última geração de tecnologias implica um grande desafio para os sistemas jurídicos e seus operadores. De todo modo, não se pode negar que, em um mundo cada vez mais globalizado, o uso da internet se torna não só útil, como por vezes essencial, proporcionando soluções para os conflitos que surgem a partir desta nova realidade. Se faz importante, portanto, que o Direito se alinhe à tecnologia.
- Sobre tecnologias disruptivas
Disrupção, buscando a etimologia da palavra, vem do latim disruptio.onis, ou seja, fratura ou quebra. O significado da palavra indica, portanto, a ideia de ruptura, de quebra ou descontinuação de um processo já estabelecido.[4]
No mundo dos negócios, inovações disruptivas provocam não a subversão do mercado, mas sim a criação de novas regras onde o pequeno poder vence o grande. A título de exemplo tem-se a Apple — onde o próprio slogan “think different” define o perfil disruptivo: quando criado, a função do celular estava ligada a um único escopo de conexão pessoal por voz, até que a Apple trouxe a perspectiva de multifuncionalidade para os aparelhos.[5]
Uma tecnologia disruptiva, por sua vez, é aquela que proporciona um processo diferente e inovador, causando efeitos de mudança e rompendo com padrões previamente estabelecidos. Trata-se, portanto, de uma tecnologia que redefine as “regras do jogo”. A tecnologia disruptiva, portanto, é aquela que provoca a transformação por meio de rupturas com paradigmas vigentes.[6]
À título de exemplo, temos: a internet, a inteligência artificial, o machine learning, o blockchain, as criptomoedas, os smart contracts, o e-commerce, entre vários outros. Mas, indo mais além, pode-se citar também aplicativos célebres como: o WhatsApp, a Netflix, o Uber, etc. Entre as diversas vantagens apontadas para seu uso em um contexto conflitual, cita-se: internacionalidade, acessibilidade internacional, atemporalidade, descentralização, deslocalização, aterritorialidade e onipresença, intangibilidade, incorporalidade ou imaterialidade.[7]
3. Além do litígio: o método da mediação
Em meio aos conflitos internacionais, despontam os métodos adequados de solução de conflitos (MASCs), ou também Alternative Dispute Resolution (ADR) em inglês. Apesar do recente boom de popularidade, tratam-se de mecanismos de resolução de disputas com um antigo histórico de utilização, hoje em dia sendo trazidos à tona pelo reconhecimento de seus resultados e efetividade. Os métodos principais que podem ser citados são: a arbitragem, a negociação, a conciliação e a mediação.
A mediação é um método de resolução de conflitos em que as próprias partes cooperativamente constroem, com o auxílio de um terceiro, o mediador, uma solução conjunta, de modo a satisfazer todos os envolvidos, preservando as relações sociais existentes.[8]
A técnica é orientada pelos princípios da imparcialidade, isonomia, oralidade, informalidade, autonomia da vontade, consensualidade, boa-fé e confidencialidade. Nesse sentido, as partes são livres para se retirarem do procedimento a qualquer tempo, obedecendo a voluntariedade. Dessa forma, o acordo obtido ao final não só é considerado justo, como também obtém um alto índice de cumprimento e efetividade, tendo em vista que foi construído em conjunto pelas partes, em observância aos seus interesses, adotando, em sua maioria, soluções criativas e duráveis.[9]
Aqui, altera-se a visão do modelo perde-ganha para a busca de um resultado ganha-ganha[10]. A grande vantagem da mediação, no fim das contas, é que, se houver suficiente compartilhamento de informação e cooperação, as próprias partes detêm o poder de decidir sobre a sua questão, e não um terceiro. Quando falamos de relações comerciais, por exemplo, quem mais sabe sobre o seu negócio e qual a melhor decisão a tomar são as próprias partes. Então, quando falamos de soluções criativas, pode-se chegar a um consenso a partir de fatos fora do objeto da lide, mas que atende aos interesses em comum das partes.
4. O ambiente virtual
Facilmente conduzida também em ambiente online, a mediação se apresenta como uma solução estratégica e eficiente para os litígios. Capaz de expandir seu alcance além das fronteiras, a tecnologia torna o processo de mediação mais acessível e eficaz. Quando se trata de resolver um conflito em que o encontro presencial seria difícil por questões de custo e/ou tempo, a mediação online desempenha um papel importante.
Ao combinar métodos de alternative dispute resolution (ADR) com as inovações tecnológicas, têm-se a solução de disputas online, ou online dispute resolution (ODR), a qual surgiu no final da década de 90, quando “se fez evidente que o entorno digital estava se convertendo em um espaço onde abundavam disputas, mas faltavam vias efetivas para sua abordagem.”[11].
As técnicas mais comuns de ODR são a negociação tecnologicamente assistida, a mediação online e a arbitragem online. Albornoz destaca entre as vantagens das ODR a sua adaptabilidade a diferentes contextos, sua eficiência, rapidez e economicidade, assim como sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento de economias emergentes[12]. Afirma RULE (2002, p.3) que “combina a eficiência da solução alternativa de disputas com o poder da Internet.”[13]
Em uma visão restrita de ODR, as Tecnologias de Informação e Comunicação (“TICs”) são combinadas com os processos offline de negociação, mediação e arbitragem. Dessa forma, a resolução de conflitos online é realizada através de meios tecnológicos comuns, de uso diário, como por mensagens ou conversas eletrônicas (instant messaging), o e-mail ou correio eletrônico, a videoconferência, os fóruns eletrônicos, as listas de correio, entre outros.
A própria mediação online foi se transformando ao longo do tempo, havendo uma mudança das tecnologias utilizadas. Inicialmente pensada e defendida para ser uma prática baseada em e-mail, hoje ferramentas como o Zoom mudam a perspectiva dessa modalidade, aproximando-se da periferia de uma mediação presencial, com vantagens próprias.
Estas tecnologias permitem às partes “uma mais fácil e rápida comunicação, em modo síncrono ou assíncrono, ainda que não estejam, ou não tenham possibilidade de estar, em presença uma da outra” [14]. Esses instrumentos compõem o que se entende por primeira geração de ODR.
A primeira geração de ODR consiste em sistemas com 3 características básicas: 1) agem como meios de comunicação, cumprindo a função de colocar as partes em contato, explorando as oportunidades oferecidas pelas TICs; 2) o ser humano tem um papel central na resolução de disputas; 3) não podem ser definidos como agentes autônomos, operando com base em ferramentas tecnológicas e atividades humanas. São sistemas que não possuem de fato as características de reatividade ao seu ambiente, de proatividade, de persistência, de inteligência, de flexibilidade e mobilidade próprias dos agentes inteligentes.[15]
Em uma noção ampla de ODR, as TICs contribuem na tomada de decisões. Aqui as tecnologias despontam como uma verdadeira quarta parte no processo de resolução do litígio. Nesse sentido, há duas perspectivas: a primeira refere-se a um modelo no qual as tecnologias auxiliam o mediador a planejar as melhores estratégias e a tomar as decisões corretas, constituindo um papel de assistente do terceiro mediador. A segunda trata de um modelo no qual os sistemas eletrônicos constituem em si o próprio mediador, executando um papel altamente ativo através da automatização do processo de decision-making, na qual a máquina atua enquanto facilitador com capacidade de realizar acordos. Essas são chamadas de segunda geração de ODR.
A segunda geração de ODR consiste em sistemas com 3 elementos comuns: 1) o objetivo não se esgota em colocar as partes em contato, mas consiste em propor soluções ou resolver o seu litígio; 2) a intervenção humana é reduzida; 3) atua como um agente autônomo.[16]
“Nesta perspectiva, já não serão as partes a ter o papel principal (ou mais activo) no desenrolar do processo de resolução do litígio, já que elas utilizarão agentes de software que as “representarão” ou que actuarão em seu lugar. Neste domínio, poderemos encontrar sistemas automatizados e sistemas inteli gentes. Estes sistemas conhecerão os objectivos da parte em benefício da qual actuam e terão a capacidade de definir a estratégia a seguir de modo a alcançar os objectivos em vista. Estes agentes de software poderão ser modelados e configurados para actuar como a parte actuaria ou, até, de um modo ainda mais eficiente.”[17]
No que concerne a contratempos ao seu desenvolvimento, a ODR lida com questões como: o desconhecimento dos mecanismos, de suas vantagens e funcionamento; da segurança das plataformas e suas ferramentas digitais em geral; da falta de acesso universal a serviços de internet de qualidade gratuitos ou a preços razoáveis; assim como a cultura jurídica que prevalece no país de elevada propensão ao litígio, o que dificulta recorrer a métodos alternativos para resolver conflitos.[18]
Frente os desafios impostos pela ODR, pergunta-se se poderia a tecnologia disruptiva influenciar positivamente, facilitando a realização de acordos e a satisfação de interesses?
Um exemplo dessa possibilidade é o Programa 4.0 do Poder Judiciário, dentro do qual o Tribunal de Justiça de Rio de Janeiro busca desenvolver um projeto pioneiro no Brasil: uma plataforma digital de mediação online que se utiliza de Inteligência Artificial. O sistema, inicialmente voltado para demandas de direito do consumidor, busca trazer celeridade, segurança e eficiência na resolução de conflitos pré-processuais. Dessa forma, a tecnologia atua enquanto mediador ou conciliador digital, oferecendo, ela mesma, alternativas e possíveis soluções.[19]
A partir desse sistema, antes de iniciar um processo judicial, é apresentada ao consumidor a opção da mediação online, de modo que existe a possibilidade de aderir à iniciativa de forma voluntária ou prosseguir no sistema tradicional. Se aceito, o sistema faz uma análise do caso, em conjunto com as informações atualizadas pela outra parte (no caso, a empresa) no seu banco de dados, e oferece ao consumidor opções que podem facilitar a realização do acordo.
Percebe-se uma potencialização da tecnologia em prol da solução de conflitos, visando o acesso à Justiça como aquele além do acesso ao Judiciário, enquanto objetiva-se, como fim último, a satisfação dos interesses. E este é só um exemplo do que pode estar por vir.
[1] Acadêmica de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora Voluntária no Programa Institucional de Iniciação Científica (PIIC). Diretora Assistente do Grupo de Pesquisa LABCODEX – Labirinto da Codificação do Direito Processual Internacional (UFES – CNPq). Monitora da matéria de Direito Internacional Privado na UFES
[2] OLIVEIRA, Davi Teófilo Nunes et al. A Internet e suas repercussões sobre a Cooperação Jurídica Internacional: estudo preliminar sobre o tema no Brasil. Instituto de Referência em Internet e Sociedade: Belo Horizonte, 2018. Disponível em: http://bit.ly/38Dxpt0. Acesso em: 13/06/2022. p. 10-11.
[3] ALBORNOZ, María Mercedes. Online Dispute Resolution (ODR) para el comercio electrónico em clave brasileña. In: MOSCHEN, Valesca; LOPES, Inez, (Org.). Desafios do direito internacional privado na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 179. Tradução livre.
[4] MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Editora Melhoramentos Ltda. 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/disrup%C3%A7%C3%A3o/. Acesso em: 15/06/2022
[5] MEMRAN, Carolina. Projeto de mediação empresarial pode ser considerado disruptivo? Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/279117/projeto-de-mediacao-empresarial-pode-ser-considerado-disruptivo. Acesso em: 18/06/2022
[6] STRECKER, Márion. A glória da dirupção. Observatório da Imprensa. E-Notícias. Edição 693. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/_ed693_a_gloria_da_dirupcao/. Acesso em: 18/06/2022.
[7] SCOTTI, L. B. Derecho Internacional Privado. Globalización e Internet. Ciudad de México: Porrúa, 2016. p. 67-71.
[8] CHASE, Oscar G. I metodi alternativi di soluzione dele controversie e la cultura del processo: il caso degli Stati Uniti D’America. In: VARANO, Vicenzo (Org.). L’altragiustizia: il metodi alternativi di soluzione dele controversie nel diritto comparatto. Mila: Dott. A. Giuffrè Editore, 2007. p. 129-156.
[9] FONSECA, A. K. A mediação de investimentos como opção viável à resolução de disputas no escopo do acordo Mercosul-União Europeia. Anais do 1º Seminário Jean Monnet Network BRIDGE. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa Law School. Portugal. 2021.
[10] NAVARRO, Trícia Xavier Cabral. A evolução da conciliação e da mediação no Brasil. Revista FONAMEC, v.1, n. 1, p. 368 – 383, maio 2017. Rio de Janeiro, 2017. p. 369.
[11] RABINOVICH-EINY, O.; KATSH, E. Lessons from Online Disputes Resolutions for Dispute Systems Design. In: WAHAB, M.S.A.; KATSH, E.; RAINEY, D. (Ed.). Online Dispute Resolution: Theory and Practice. Amsterdam: Eleven International Publishing, 2012. p. 39. Tradução livre.
[12] ALBORNOZ, op. cit., p. 191.
[13] RULE, Colin. Online Dispute Resolution for Business. B2B, E-Commercer, Consumer, Employment, Insurance, and Other Commercial Conflicts. San Francisco: Jossey-Bass, 2002. p.3. Tradução livre.
[14] ANDRADE, Francisco Carneiro Pacheco; CARNEIRO, Davide; NOVAIS, Paulo. A inteligência artificial na resolução de conflitos em linha. Scientia Iuridica – Tomo LIX, 2010. n.° 321. 2010. p. 2.
[15] PERUGINELLI, Ginevra; CHITI, Giulia. Artificial Intelligence in Alternative Dispute Resolution. Proceeding of the Workshop on the law of electronic agentes. LEA, 2002. In: ANDRADE, Francisco Carneiro Pacheco; CARNEIRO, Davide; NOVAIS, Paulo. A inteligência artificial na resolução de conflitos em linha. Scientia Iuridica – Tomo LIX, 2010. n.° 321. 2010. p. 5.
[16] Ibidem.
[17] ANDRADE; CARNEIRO; NOVAIS, op. cit., p. 3-4.
[18] ALBORNOZ, op. cit., p. 200.
[19] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Inteligência artificial na mediação pré-processual. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Assessoria de Imprensa. 2021. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/7998266. Acesso em: 24/10/2022.