Arbitragem e produção antecipada de provas
Giovanni Mangili [1]
Análise das discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da competência para produção antecipada de provas em conflitos abrangidos por convenção arbitral.
A Lei nº 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”) define que é o árbitro “o juiz de fato e de direito” de todos os conflitos abrangidos por convenção arbitral[2], cabendo a ele não somente decidi-los, mas também direcioná-los de acordo com o procedimento convencionado entre as partes, além de definir as provas que serão produzidas no seu curso[3].
A partir da compreensão do texto legal, é possível concluir que, a princípio, também caberia ao árbitro apreciar quaisquer pleitos de caráter cautelar relacionados ao conflito. No entanto, a intervenção do Judiciário em conflitos abrangidos por convenção arbitral é admitida, de forma excepcional, em situação muito específica[4]: urgência no provimento jurisdicional a impedir ou ao menos desaconselhar que se aguarde a instauração da arbitragem.
Tal possibilidade decorre especialmente do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que define que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito e estabelece o direito à prestação jurisdicional efetiva, refletido no artigo 22-A da Lei de Arbitragem e que garante às partes o direito de recorrer ao Poder Judiciário para concessão de medida cautelar ou de urgência.
Mesmo antes da elaboração da Lei de Arbitragem, já havia no Brasil discussões doutrinárias acerca da competência para apreciação de medidas de caráter cautelar em relação a conflitos abrangidos por convenção arbitral. Por um lado, havia o entendimento de que seria apenas do árbitro a competência para decretar a medida cautelar, mesmo sem possuir poder de coerção[5]. Nesse sentido, Carlos Alberto Carmona defendia que, ainda que o árbitro não possua poder de coerção, caberia apenas a ele decidir sobre medidas cautelares, que seriam executadas pelo Poder Judiciário.
Em contrapartida, também já era admitida pela doutrina a competência do Poder Judiciário para concessão de medidas cautelares, tal como a produção antecipada de provas, especialmente sob o fundamento de que, na hipótese de impossibilidade de atuação dos árbitros, as partes interessadas não poderiam ficar desamparadas. Carlos Alberto de Salles[6] ressalta que essa hipótese se fundamenta especialmente na garantia constitucional de inafastabilidade da tutela jurisdicional.
Inclusive, este também foi o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no ano de 2012, no julgamento do EDcl no REsp 1.297.974, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Nesta oportunidade, o STJ concluiu que seria possível a atuação do Poder Judiciário previamente à efetiva instituição da arbitragem para a concessão de medidas de natureza cautelar. A Ministra Nancy Andrighi ressaltou em seu voto, contudo, que assim que a situação de urgência fosse superada e o Tribunal Arbitral fosse constituído, a competência para apreciação da matéria em discussão deveria ser imediatamente transferida ao juízo arbitral[7].
De todo modo, com a superveniência da Lei de Arbitragem e das alterações promovidas pela Lei nº 13.129/2015[8], a possibilidade de adoção de medidas cautelares pelo Poder Judiciário em conflitos abrangidos por convenção arbitral, tal como a produção antecipada de provas, passou a ser expressamente garantida[9].
A partir de então, determinadas instituições de arbitragem no Brasil passaram a prever expressamente em seus regimentos internos a possibilidade de requerimento de medidas cautelares junto ao Poder Judiciário, tais como a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (CAMARB)[10] e o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC)[11]. Da mesma forma, em consonância com referidas alterações legislativas, o Poder Judiciário também passou a se manifestar favoravelmente à possibilidade de sua atuação prévia à instituição do tribunal arbitral, constituindo sólida jurisprudência nesse sentido[12].
Em entendimento firmado no julgamento do Conflito de Competência 159.922/SP[13], o STJ concluiu que estas inovações legais foram instituídas com o objetivo de viabilizar o acesso à justiça nos casos em que a arbitragem ainda não tenha sido instaurada, permitindo ao Judiciário deferir medida de urgência pleiteada pela parte para preservar direito sob situação de risco e garantir, assim, o resultado útil da arbitragem.
Com base neste posicionamento, critérios claros acerca dos limites da atuação do Poder Judiciário em conflitos dessa natureza foram estabelecidos: antes da constituição do tribunal arbitral, a competência é do Poder Judiciário. Instituído o tribunal arbitral, a competência passa a ser apenas dos árbitros[14].
Nada obstante, com o passar do tempo, a adoção de medidas de urgência também passou a ser admitida no âmbito arbitral, mediante a solicitação de atuação dos chamados “árbitros de emergência”, desde que haja convenção entre as partes ou previsão expressa no regimento interno da câmara arbitral em questão.
A atuação do árbitro de emergência, contudo, está limitada a solucionar a questão urgente apresentada pelas partes, não podendo afetar o poder decisório dos árbitros ou os vincular ao que foi definido interinamente em relação ao mérito da disputa, podendo, inclusive, serem revogadas ou alteradas pelos árbitros as decisões proferidas pelos árbitros de emergência.
Em razão das peculiaridades da arbitragem, contudo, é possível que o árbitro de emergência nomeado pela câmara seja impugnado por uma das partes, o que faz com que este procedimento nem sempre seja o mais célere[15]. Entretanto, a mera possibilidade de adoção de referido procedimento arbitral de emergência fez surgir novas discussões acerca da competência do Poder Judiciário para concessão de medidas de urgência.
Representando o entendimento doutrinário minoritário, Humberto Dalla[16] defende que, havendo convenção expressa entre as partes de que eventual conflito deveria ser dirimido em câmara arbitral que possibilita a convocação de árbitro de emergência, é vedada a atuação do Poder Judiciário. Em contrapartida, o entendimento manifestado pela maior parte da doutrina[17] é no sentido de que a jurisdição estatal nunca pode ser afastada, mesmo havendo convenção entre as partes para a adoção do procedimento arbitral de emergência.
No mais, outra questão que passou a ser discutida na doutrina e jurisprudência foi a possibilidade da determinação de produção antecipada de prova pelo Poder Judiciário, sem a demonstração da existência de urgência para a adoção da medida. Por um lado, surgiu na doutrina entendimento no sentido de que, considerando a inexistência de caráter litigioso na produção antecipada de provas, não haveria a necessidade de prestação jurisdicional na determinação de produção de provas[18], de modo que a existência de convenção arbitral não afastaria, em nenhuma hipótese, a apreciação de referida medida cautelar pelo Poder Judiciário. No entanto, em consonância com a letra da lei, o entendimento majoritário da doutrina é no sentido de que a ação de produção antecipada de provas exige, sim, a prestação jurisdicional[19], de modo que a possibilidade de apreciação da medida pelo Poder Judiciário exigiria a demonstração de urgência.
Assim, em linhas gerais o que se observa é que, ao longo das últimas décadas, a produção antecipada de provas sofreu grandes alterações e avanços no Brasil, especialmente com a superveniência do Código de Processo Civil de 2015, que observou as sugestões doutrinárias e criou o instrumento extremamente útil de Produção Antecipada de Provas, não só para a preservação de provas, como para a resolução consensual ou prevenção de litígios.
A arbitragem, por sua vez, é um instituto que foi criado especialmente para otimizar a resolução de conflitos, e considerando todos os fatos acima narrados, é possível concluir que sua competência para o processamento de medidas probatórias autônomas depende da situação em que está inserida e da observância pelas partes e julgadores dos princípios da boa-fé e colaboração.
Nesse contexto, e com base no que foi abordado no presente artigo, tem-se que atualmente a competência para a produção antecipada de provas na arbitragem, quando inexistente a urgência, tende sempre a ser do tribunal arbitral, corroborando a prevalência do seu próprio conceito, voltado à convenção das partes, que optaram por seguir com a sua instituição em detrimento do Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
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BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 159.922/SP. Rel. Min. Moura Ribeiro. Brasília. Julgado em 14.05.2019. Publicado em 16.05.2012.
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[1] Advogado em Contencioso Cível e Arbitragem no TozziniFreire Advogados. Pós-graduando em Direito Empresarial na FGV Direito SP (FGV Law). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
[2] Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.
[3] Art. 22. Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício.
[4] Art. 22-A: “Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício.”
[5] CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem no Processo Civil Brasileiro, São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 108 e 109.
[6] SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem e jurisdição estatal, in Negociação, mediação, conciliação e arbitragem: curso de métodos adequados de solução de controvérsias/coordenação Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes Lorencini, Paulo Eduardo Alves da Silva, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 308.
[7] STJ, 3ª Turma, EDcl no RESp 1.297.974, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 04.09.2012.
[8] Altera a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, e a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem e dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral e a sentença arbitral, e revoga dispositivos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[9] Art. 22-A: “Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício.”
[10] 9.2. Enquanto não instalado o Tribunal Arbitral, as partes poderão requerer medidas cautelares ou antecipatórias de mérito à autoridade judicial competente. Neste caso, a parte deverá, imediatamente, dar ciência do pedido à CAMARB. O Tribunal Arbitral, tão logo constituído, poderá reapreciar o pedido da parte, ratificando ou modificando, no todo ou em parte, a medida deferida pela autoridade judicial.
[11] 22.2 Havendo urgência, quando ainda não constituído o tribunal arbitral, as partes poderão requerer medidas cautelares, coercitivas e antecipatórias à autoridade judicial competente, se outra forma não houver sido expressamente estipulada por elas.
[12] TJSP; Agravo de Instrumento 2221549-82.2022.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São José do Rio Preto – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/11/2022; Data de Registro: 26/11/2022. / TJSP; Apelação Cível 1026300-46.2018.8.26.0100; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 10/09/2019; Data de Registro: 17/09/2019
[13] STJ, CC 159.922/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 14.05.2019.
[14] FIGUEIRA JUNIOR, Joel. Arbitragem, 3ª ed., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 299.
[15] NEVES, Flávia Bittar; LOPES, Christian S. Batista. Medidas cautelares em arbitragem, in 20 anos da Lei de Arbitragem – Homenagem a Petrônio R. Muniz/coord. Carlos Alberto Carmona, Selma Lemes e Pedro Martins, São Paulo: Editora Atlas, 2017, p. 471.
[16] DALLA, Humberto. Manual de mediação e arbitragem/ Humberto Dalla e Marcelo Mazzola, São Paulo: Saraiva/Educação, 2019, p. 326. Adotando o mesmo entendimento: MARQUES, Paula Menna Barreto, in CARNEIRO, Pulo Cezar Pinheiro; GRECO, Leonardo; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Temas controvertidos na arbitragem à luz do Código de Processo Civil de 2015, Rio de Janeiro: Editora GZ, 2018, p. 229.
[17] FIGUEIRA JUNIOR, Joel. Arbitragem, 3ª ed., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 299. / TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e a tutela provisória no Código de Processo Civil de 2015, in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 46, Jul-Set 2015, p. 287-313.
[18] ROSSONI, Igor Bimkowski. Produção antecipada de prova sem requisito da urgência e juízo arbitral no direito societário: breves considerações sobre a competência para a sua produção. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Pereira. (Coords). Processo Societário – Volume III. São Paulo: Quartier Latin, 2018.
[19] TALAMINI, Eduardo. Competência-competência e as medidas antiarbitrais pretendidas pela Administração Pública. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 50, p. 127-153, 2016.