Panorama da litigância climática no Brasil
Panorama da litigância climática no Brasil
Rebeca Stefanini Pavlovsky(1)
Carolina Teixeira Piñeira(2)
Os direitos fundamentais possuem caráter dinâmico e evolutivo, isto é, refletem os avanços sociais conquistados ao longo da história, bem como espelham as mudanças das relações sociais. Com isso, a doutrina(3) costuma classificar os direitos fundamentais em dimensões de acordo com o momento do seu surgimento.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão, também chamados de direitos civis, surgiram com as Revoluções Liberais, e possuem caráter negativo, ou seja, impõem limites ao Estado para garantir as liberdades individuais. Já os direitos de segunda dimensão, conquistados ao longo do século XIX, consistem em direitos positivos que exigem um fazer do Estado. Os direitos de terceira dimensão, por sua vez, surgiram mais recentemente e estão relacionados aos valores da fraternidade e da solidariedade, em que o foco é o coletivo. Por fim, os direitos de quarta dimensão compreendem os direitos resultantes do processo de globalização, envolvendo o direito à democracia, à informação, ao pluralismo e à bioética.
Com a evolução dos direitos fundamentais, e ante ao nível de complexidade das relações sociais contemporâneas, o regramento processual voltado à tutela de direitos materiais individuais tornou-se insuficiente. Em algumas searas, os mecanismos tradicionais de solução de conflitos não conseguem mais dirimir disputas e mitigar riscos relacionados às adversidades impulsionadas pelo fenômeno da globalização.
É o que ocorre, por exemplo, com o enfrentamento das mudanças climáticas, um, se não o principal, problema a ser combatido a nível global. Especialistas alertam que estamos cada dia mais próximos a um ponto sem retorno (point of no return) da crise climática e do superaquecimento da Terra, o que ocasionará transtornos sem precedentes, atingindo a todos, ainda que em diferente proporção.
Nesse contexto, surgiram as chamadas ações climáticas: ações judiciais e administrativas que buscam mitigar a emissão de gases de efeito estufa (GEE), reduzindo a vulnerabilidade e os efeitos da crise climática e reparando os danos causados.
No Brasil, essas ações possuem no polo ativo tanto o Ministério Público, a Defensoria Pública, a sociedade civil por meio de associações ou ONGs, como também entes federativos, e os cidadãos, nas ações populares. Do outro lado, figuram como principais atores dos litígios climáticos os entes da federação (União, estados, Distrito Federal e municípios), e as grandes companhias responsáveis pela emissão de GEE.
Sendo tão amplos os bens tutelados e as possibilidades de litígios climáticos, essas ações são propostas por meio de diversos instrumentos processuais, em especial ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e ações de controle concentrado de constitucionalidade.
A doutrina(4) tem dividido as ações climáticas em quatro espécies, considerando a finalidade da sua propositura:
- Ações de Mitigação: buscam a redução das principais causas do aquecimento global;
- Ações de Adaptação: visam a redução da vulnerabilidade dos efeitos das mudanças climáticas;
- Ações de Reparação: tem por finalidade a compensação pelas perdas e danos individuais e coletivos sofridos em razão das mudanças climáticas;
- Ações de Risco: destinam-se à gestão dos riscos climáticos.
Os litígios climáticos de mitigação, em regra, exigem do Poder Público a implementação de p olíticas públicas destinadas a reduzir emissões de GEE, promover a mudança da matriz energética para fontes renováveis e reduzir o desmatamento. Busca-se também o cumprimento das metas internacionais de redução de carbono e metano, estabelecidas no Acordo de Paris. A título de exemplo, pode-se mencionar a ação popular proposta perante a justiça federal do estado de São Paulo, contra o ex-Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o ex-Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em função da nomeada “pedalada climática”, quando o governo apresentou novas metas relacionadas ao Acordo de Paris, regredindo o alcance do compromisso assumido pelo Brasil à época.
Já os litígios climáticos de adaptação destinam-se a compelir o Poder Público ou o setor privado à adoção de medidas necessárias para combater as consequências das mudanças climáticas, bem como obrigar a adoção de pautas da agenda ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança). São exemplos dessa espécie de litígio climático, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 708 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 59, que discutem, respectivamente, a efetiva aplicação dos recursos do Fundo Clima e a falta de implementação de ações para proteção da Amazônia Legal e de destinação de recursos ao Fundo da Amazônia.
As ações climáticas de reparação, por sua vez, visam à responsabilização civil de pessoas jurídicas de direito público ou privado mediante a compensação pelas perdas e danos sofridos por determinados indivíduos ou grupos em função dos impactos da crise climática. Neste contexto, cumpre relembrar o caso do Agricultor Peruano que ingressou com uma ação contra a RWE, empresa alemã de distribuição de energia e gás natural, em razão dos danos sofridos com os efeitos das mudanças climáticas na Cordilheira dos Andes, em especial o aumento do volume do lago glacial de Palcacocha. A Companhia alemã foi condenada a destinar 17 mil euros à Associação Comunitária de Huaraz (Peru) com o objetivo de construir equipamentos para proteção da vila. O valor foi arbitrado com base no fato de que a RWE emite aproximadamente 0,47% das emissões mundiais de GEE. Logo, o custo de reparação corresponde a 0, 47% do custo estimado das medidas protetivas.
Os litígios climáticos de riscos, por fim, almejam que a mudança do clima seja considerada como um fator de risco tanto para fins de licenciamento ambiental, exigindo-se estudos de impacto ambiental, quanto para fins econômicos, considerando-se as fragilidades trazidas a determinada atividade ou investimento. Dentre esse tipo de ação climática pode-se destacar a ação Abrahams vs. Commonwealth Bank of Australia – CBA, proposta por acionistas da CBA sob a alegação de que a instituição financeira deixou de divulgar os riscos de negócios relacionados às mudanças climáticas no relatório anual de 2016. Relevante também a ação proposta em 2018 pelo Estado de Nova Iorque contra a Exxon Mobil, multinacional de petróleo e gás, sob o argumento de que a empresa enganou acionistas ao minimizar os riscos esperados das mudanças climáticas em seus negócios.
De acordo com o Ministro Herman Benjamin, as Ações Climáticas possuem três grandes desafios. O primeiro entrave diz respeito à definição da jurisdição, pois, em que pese as mudanças do clima afetarem mais determinadas regiões ou que determinado fenômeno ocorra em um local específico, o bem jurídico tutelado – segurança climática – é um direito metaindividual e transfronteiriço.
Sobre esse aspecto, cumpre esclarecer que o foro competente para julgar os litígios climáticos varia conforme a natureza da ação proposta e as partes envolvidas. De modo geral, as ações que versam sobre a tutela direitos coletivos seguem a máxima: terá competência funcional para processar e julgar a causa o juízo do foro do local onde ocorrer o dano, em sendo os danos de âmbito nacional ou regional o foro competente será o da Capital do Estado ou no do Distrito Federal(5). Contudo, em se tratando de danos climáticos, a grande dificuldade é estabelecer o local do foro, razão pela qual, por se tratar de bem transfonteriço, muitas vezes aplica-se a o princípio do forum non conveniens(6).
Outra consideração importante em relação a esse aspecto é a impossibilidade de aplicação de formas alternativas de solução de conflito, como mediação e arbitragem, para discussão do mérito de ações climáticas. No Brasil, podem ser objeto de mediação e arbitragem os conflitos que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação(7).
De tal modo, as formas alternativas de solução de conflito podem tem um papel importante nas ações de reparação que versem sobre danos individuais e nas ações de risco ou, ainda, na definição da melhor técnica de recuperação dos bens lesados, envolvendo discussões técnicas e ponderações de métodos, cronograma e resultados objetivados. Estudos apontam que, apenas em 2020, cerca de 1.003 arbitragens envolviam, indiretamente, questões relacionadas ao combate à crise climática, o que representa aproximadamente 29% de todos os processos arbitrais do mundo(8).
A segunda dificuldade em relação aos litígios climáticos é que, normalmente, o julgador possui jurisdição para resolver a demanda como um todo. Contudo, a mitigação da crise climática depende de esforços planetários, de modo que, nas ações climáticas, não se pretende a prestação jurisdicional final, até porque impossível, mas se busca o envolvimento do poder jurisdicional no combate à crise climática, obrigando que sejam adotadas medidas mitigadoras ou de compensação.
O terceiro desafio mencionado pelo Ministro diz respeito à coisa julgada, pois, em regra, a coisa julgada limita-se à circunscrição do julgador, não obstante nas ações climáticas, muitas vezes, a coisa julgada ultrapasse fronteiras.
Pode-se adicionar também, como um quarto desafio, a demonstração de nexo causal e a produção de prova, pois, em função da complexidade do tema, a cadeia causal é longa e de difícil demonstração.
Nesse cenário, observa-se que os litígios climáticos possuem um amplo espectro de objetivos e fundamentos, prevendo-se que o número de ações no Brasil venha a aumentar consideravelmente nos próximos anos. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP 26), o Brasil foi duramente cobrado pela comunidade internacional a adotar medidas urgentes e rigorosas no combate ao desmatamento e às queimadas, de modo a proteger a floresta em pé. Por outro lado, o Brasil conta com um robusto arcabouço legislativo destinado à proteção do meio ambiente e dos biomas brasileiros, dentre eles a Política Nacional do Meio Ambiente, Política Nacional sobre Mudança do Clima, Código Florestal e a própria Constituição Federal.
Frente a essa perspectiva, reforça-se a importância de as empresas adotarem políticas estruturadas de aderência aos critérios ESG, construindo uma consciência corporativa alinhada com políticas sustentáveis que ultrapassam o business as usual e fazem a diferença no mundo.
(1) Advogada na área de Direito Ambiental, com atuação nas práticas de Agronegócio e ESG & Impacto no Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. gGraduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Constitucional e Processo Constitucional pela Escola de Direito do Brasil. Atualmente, cursando o MBA em Agronegócio pela USP/Esalq. É integrante da Comissão de Meio Ambiente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM e da Comissão ESG da Câmara de Comércio Brasil-Canadá.
(2) Advogada na área de Direito Ambiental, com atuação na prática de Agronegócio do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. Graduada em Direito com título de menção honrosa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
(3) TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 19ª Edição. Editora Saraiva, 2021, p. 151. “A ideia de “gerações”, contudo, é equívoca, na medida em que dela se deduz que uma geração se substitui, naturalmente, à outra, e assim sucessivamente, o que não ocorre, contudo, com as “gerações” ou “dimensões” dos direitos humanos. Daí a razão da preferência pelo termo “dimensão”.
(4) MANTELLI, Gabriel; NABUCO, Joana; e BORGES, Caio. Guia de Litigância Climática: Litigância climática na prática: estratégias para litígios climáticos no Brasil. CONECTAS, Direito Humanos, 2019. Disponível em: https://www.conectas.org/publicacao/guia-de-litigancia-climatica/
(5) Lei nº 7.347/1985 – Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa.
Lei nº 8.078/1900 – Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local: I – no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local; II – no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
(6) RAMOS, André de Carvalho. Curso de direito internacional privado. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 238. “A doutrina do forum non conveniens combate o abuso do direito de litigar, impedindo que o forum shopping (a escolha de uma das jurisdições concorrentes que melhor atenderia os interesses do proponente da ação) vulnere (i) os direitos da defesa (pelos custos de arcar com defesa em foro estrangeiro), (ii) da melhor instrução do (as provas estão em outro país) ou (iii) mesmo da jurisdição escolhida (que teria que julgar, com dispêndio de tempo e recursos, uma demanda com pouco vínculo com o foro).
(7) Lei nº 9.307/1996 – Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
Lei nº 13.140/2015 – Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. § 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.