Do discovery a produção antecipada de provas em arbitragem
Do discovery à produção antecipada de provas em arbitragem: um breve contexto sobre a evolução do instituto.
Stéphannye de Pinho Arcanjo[1]
Eduarda Teixeira Martins[2]
Quando o conhecimento existente se mostra insuficiente para responder aos desafios postos pela sociedade surge a necessidade de adaptar os preceitos normativos preexistentes, esses que são moldados não apenas pela necessidade civil, mas também pela influência de outros ordenamentos jurídicos.
É importante ressaltar que a importação de institutos deve se adaptar às características do local que a importou para que produzam os efeitos esperados. Em outras palavras, não basta a mera introdução destes institutos no ordenamento; é imprescindível que a aplicação deles seja moldada às peculiaridades brasileiras[3]. Assim, conhecer a origem e as transformações de um instituto importado torna-se crucial para a sua boa compreensão e utilização.
Em vista disso, o presente artigo busca explorar como o discovery, instituto do commom law, relaciona-se com a implementação da produção antecipada de provas sem caráter de urgência no ordenamento jurídico brasileiro e o caminho percorrido pelo instituto até o seu emprego no âmbito arbitral. Inicialmente, é crucial esclarecer no que consiste o discovery e quais efeitos este instituto proporciona ao seu ordenamento de origem. Sem pormenorizar, trata-se o discovery de procedimento adotado em países de commom law, no qual as partes, antes de iniciar o litígio, produzem as provas relevantes ao possível deslinde do conflito. Na fase processual denominada pre-trial, tal produção pode ocorrer pela oitiva de testemunhas ou pela apresentação de documentos[4]. Em geral, as partes deverão apresentar o nome de pessoas detentoras de documentos, informações sobre peritos e perícias que possam vir a ser produzidas e, especialmente, informações sobre as provas e testemunhas que serão utilizadas em julgamento.[5]
O discovery garante que todas as provas relativas à disputa sejam trazidas à discussão, o que possibilita às partes a análise estratégica do mérito do eventual litígio.[6] Dessa análise decorre um importante efeito do discovery: a contenção da litigiosidade, visto que a prática favorece a solução consensual da controvérsia, na medida em que permite aos eventuais litigantes avaliarem as chances de sucesso da tese a ser defendida, de sorte a ingressar em juízo com maior segurança e responsabilidade ou, por outra, simplesmente não ingressar.[7] Além disso, a prática do discovery pode contribuir para melhor condução do processo, já que o conhecimento prévio e adequado dos fatos pode reduzir assimetria de informações, bem como poupar custos do processo[8].
No Brasil, pelo Código de Processo Civil (“CPC”) de 1973 a antecipação de prova se justificava apenas pelo risco de seu perecimento, com o caráter cautelar (acessório). A partir da promulgação do CPC de 2015, essa ação se transformou em uma “demanda com vida própria”[9], sem o requisito da urgência para sua interposição. Tal disposição foi introduzida no artigo 381, incisos II e III.
Guardadas as devidas diferenças culturais e legislativas, tem-se que o ordenamento jurídico brasileiro passou a conter uma figura semelhante à do discovery, que consiste, objetivamente, em ação de procedimento sumário que visa a produção probatória antes da eventual instauração de conflito, sem natureza cautelar, ou seja, sem que seja necessário demonstrar risco de prejuízo na produção posterior.[10]
Entretanto, apesar de ambos os institutos se prestarem ao exercício autônomo do direito à prova, não se pode dizer que houve pura e simplesmente uma importação do discovery para o ordenamento jurídico brasileiro, mas sim, como se extrai da própria Exposição de Motivos do CPC/15[11], uma influência, na medida em que se buscava implantar no ordenamento pátrio uma ferramenta que causasse os mesmos efeitos, acima mencionados, do discovery, qual seja, a contenção da litigiosidade e a celeridade processual.[12] Assim, ainda que se buscasse implementar no Brasil efeito semelhante ao observado nos países de commom law, sempre se teve em mente a imprescindibilidade de adaptar tal instituto à estrutura e ao substrato cultural brasileiro.[13]
Apesar da similitude, existem diferenças entre o discovery e a produção antecipada de provas sem caráter de urgência. Talvez a mais relevante consista na natureza facultativa e independente do instituto brasileiro. Enquanto no Brasil a instauração da ação antecipada de provas é meramente uma faculdade das partes e ocorre de forma desvinculada do eventual processo, no ordenamento americano consiste em fase obrigatória[14] (pre-trial), pois apenas após a constituição de tais provas é que as partes poderão dar início a fase de julgamento do processo, denominada trial.[15] Outro ponto que demonstra a adequação da produção antecipada de provas à cultura jurídica brasileira é que, diferentemente do discovery, as partes não são obrigadas a produzir provas que sejam expressamente desfavoráveis à sua defesa.
A disposição acerca da produção antecipada de provas sem caráter de urgência trouxe, então, reflexos à arbitragem.
Discute-se, nesse cenário, a competência do juízo estatal para apreciar ação de produção antecipada de provas, quando as partes interessadas são signatárias de cláusula compromissória silente acerca do tema. Isso, pois, havendo determinação das partes na cláusula de arbitragem, prevalece o que foi acordado, diante da disponibilidade da matéria.[16]
A Lei de Arbitragem é silente nesse sentido e disciplina a questão em relação às ações cautelares e de urgência.[17] Não há, na doutrina, consenso acerca desta controvérsia. Alguns autores, a exemplo do Professor Fredie Didier Jr. [18], defendem que não há na produção antecipada de provas decisão sobre o direito material abrangido pela convenção de arbitragem. Em outras palavras, não há litígio e, sendo a cláusula aplicável apenas a controvérsias, seria do judiciário a competência para apreciar a ação. Em contrapartida, a maioria dos autores, a exemplo do Professor Flávio Yarshell, adotam o entendimento de que, na ausência de estipulação expressa, a produção antecipada de provas deve ser considerada como incluída no escopo da convenção de arbitragem. [19] Essa posição foi corroborada por decisão do STJ, em que a 3° turma, por unanimidade, decidiu que, na existência de cláusula compromissória, a pretensão relativa ao direito autônomo à prova deve ser submetida ao juízo arbitral, quando não resta configurada a situação de urgência descrita no art. 381, inciso I, do CPC.[20]
No entanto, ainda que a questão da competência levante controvérsias, é fato que a produção antecipada de provas sem caráter de urgência pode ocorrer em arbitragem[21] e, em razão disso, tem-se observado um movimento no âmbito arbitral para regular este procedimento. Isso deve-se ao fato de que, a partir do momento em que um novo instituto passa a ser adotado nas relações jurídicas, torna-se necessário adequá-lo não somente ao ordenamento de forma geral, mas também aos métodos em que ele poderá ser empregado, principalmente se considerarmos que as regras do Código de Processo Civil, dispositivo normativo que introduziu a produção antecipada em nosso ordenamento, só se aplicarão à arbitragem quando as partes assim determinarem.[22]
É exemplo deste movimento a Norma Complementar 06/2025 do Centro de Mediação e Arbitragem da CAM CCBC, publicada em janeiro/2025, que regula o procedimento de produção antecipada de provas[23]. e Emseu artigo 1º, item (c), a norma vincula a aplicação da produção antecipada de provas à contenção da litigiosidade.
Logo, assim como no surgimento da produção antecipada de prova sem caráter de urgência no CPC/15, agora, na sua regulamentação no âmbito arbitral, há forte influência dos institutos estrangeiros, bem como das suas vantagens e dos problemas enfrentados por eles.
Isso evidencia, portanto, o marco inicial deste artigo: a importância de compreender a origem e a evolução do instituto para sua aplicação, haja vista sua recente ascensão no cenário arbitral.
[1] Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada em Azevedo Sette Advogados na área de Arbitragem e Mediação. Co-editora do Blog da New Generation do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC).
[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e Estagiária em Azevedo Sette Advogados.
[3] Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda critica a importação de preceitos sem se atentar às peculiaridades locais, aduz que por vezes são tragas normas “sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 191.
[4] REDFERN, Alan; HUNTER, Martin. Redfern & Hunter: Law and Practice of International Commercial Arbitration. 6th Ed. Oxford, 2015.
[5] KANE, Mary Kay. Civil procedure. 6. ed. St. Paul: Thomson West, 2007. p. 86.
[6] PESSOA, Fernando José Breda. A Produção Probatória na Arbitragem. Revista Brasileira de Arbitragem, nº 13, 2007.
[7] CAMBI, E.; PITTA, R. G. Discovery no processo civil norte-americano e efetividade da justiça brasileira. Revista de Processo. v. 245, julho de 2015.
[8] YARSHELL, Flávio et al. Produção antecipada de prova desvinculada da urgência na arbitragem. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coord.). Processo societário. v. IV. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p.456
[9] FORBES, Carlos et al. Produção antecipada de provas no Judiciário e Arbitragem. In: CBAR. Coletânea de Artigos CBAR 2022. São Paulo: Almedina Brasil, 2022. p. 446
[10] TALAMINI, Eduardo. Produção Antecipada de Prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, vol. 260, p. 75-101.
[11] “[…] criou saudável equilíbrio entre conservação e inovação, sem que tenha havido drástica ruptura com o presente e com o passado. Foram criados institutos inspirados no direito estrangeiro, como se mencionou ao longo desta Exposição de Motivos, já que a época em que vivemos é de interpenetração das civilizações.” SENADO FEDERAL. Código de Processo Civil e Normas Correlatas. Brasília. 2015. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf> .Acesso em: 30 de novembro de 2024.
[12] Nesse sentido, Greco defendia que: “para que a celeridade não constitua um obstáculo, certamente o processo deverá ser aperfeiçoado, através de técnicas mais apropriadas de antecipação da atividade probatória, como a disclosure e a discovery do direito anglo-americano”. GRECO, Leonardo. Limitações Probatórias no Processo Civil. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, v.4, n.4, 28p, 2009.
[13] Como já defendia o professor Flávio Luiz Yarshell, em sua tese percursora acerca do tema: “Essa lembrança é feita sem qualquer cogitação de um eventual transplante de tais institutos para sistemas de estrutura, origem e substrato cultural diversos, tal como é o caso brasileiro.”. YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009.
[14] “The word ‘discovery’ is usually used as a shorthand expression to cover two separate but linked procedures. The first, which is truly described as ‘discovery’ is the listing, by each party to a proceeding, of all documents he has or has had in his possession, custody or power relating to the matters in issue in the case. The form of list prescribed for use in the High Court is divided into two schedules, the first listing all the documents the party still has in his possession, custody or power and the second listing those documents he no longer has. The first schedule is itself divided into two parts, the first setting out the documents which the other side are going to be able to inspect, and the second those documents which will not be available for inspection because the party compiling the list claims privilege for them.” [John K. Gatenby, ‘Discovery – is it Really Necessary?’, (1985), 51, Arbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, Issue 4, pp. 539-547]
[15] BACELLAR, Anna Luíza Sartorio. Discovery à brasileira: a produção antecipada de prova como direito autônomo e sem o requisito de urgência, como técnica eficiente à contenção da litigiosidade. IV Congresso de Processo Civil Internacional, Vitória, 2019.
[16] MEIRELES, Carolina Costa. Produção Antecipada de Prova e Arbitragem: uma análise sobre competência. Revista de Processo, vol. 303, p. 451-478, 2020.
[17] Lei 9.307/96:
Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.
[…]
Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros.
[18] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 14 ed. Salvador: JusPodivm, 2019. v. II. p. 170-171.
[19] YARSHELL, Flávio Luiz; MEJIAS, Lucas Britto. Tutelas de urgência e produção antecipada da prova à luz da Lei n. 13.1219/2015. In: CAHALI, Francisco José; RODOVALHO, Thiago; FREIRE, Alexandre (Org.). Arbitragem: Estudos Sobre a Lei n. 13.129, de 26-5-2015. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 244-245.
[20] STJ, REsp nº 2.103.428/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/03/2024, DJe de 21/03/2024.
[21] YARSHELL, Flávio Luiz. Brevíssimas Notas a Respeito da Produção Antecipada da Prova na Arbitragem. Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação, vol. 2, 2014, pp. 1105-1110.
[22] STJ. Recurso Especial nº 1851324-RS. Terceira Turma, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em: 21/08/2024.
[23] Outro exemplo é a Resolução nº 14/2024 da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP, publicada em setembro/2024, que, no artigo 3º, dispõe que a parte requerida poderá impugnar a produção de prova em caso de fishing expedition. O fishing expedition consiste em prática abusiva comum no âmbito do discovery, em que a parte formula requerimento genérico de informações, a fim de encontrar uma motivação para um pleito ainda não existente (YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009).