Third Party Funding: acesso à arbitragem e viabilidade no Brasil

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Third Party Funding: acesso à arbitragem e viabilidade no Brasil

Marina Silva Caramuru[1]

 

O debate sobre o financiamento de litígios por terceiros (Third Party Funding – “TPF”) vem ganhando força no cenário internacional e, gradualmente, desperta o interesse da comunidade jurídica brasileira. Embora ainda não haja uma legislação específica sobre o tema no Brasil, o instituto vem ganhando forças no país – tanto que já foi previsto nos regulamentos de algumas câmaras arbitrais nacionais –, pois representa uma alternativa concreta para viabilizar o acesso à arbitragem – especialmente para empresas em crise, que enfrentam dificuldades financeiras para suportar os custos desse tipo de procedimento, naturalmente mais caro que o Poder Judiciário[2].

O TPF consiste, em termos simples, na atuação de um terceiro investidor que custeia os gastos do processo judicial ou arbitral[3] – como honorários advocatícios, custas, taxas e perícias – em troca de uma participação nos resultados da demanda, caso ela seja favorável à parte financiada[4]. Trata-se, portanto, de uma forma de financiamento de risco, em que o retorno do investimento está atrelado ao êxito do caso[5].

Já consolidado em jurisdições como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Alemanha, o TPF tem sido amplamente utilizado no mundo, sobretudo em arbitragens comerciais internacionais. No Brasil, contudo, o tema ainda encontra alguns obstáculos, especialmente pela ausência de regulamentação específica ou de jurisprudência consolidada.

Não obstante, percebe-se que, nos últimos anos, houve um aumento significativo de artigos, seminários e debates acadêmicos envolvendo o assunto, além de maior atenção de escritórios e departamentos jurídicos quanto à viabilidade do TPF em determinados casos, o que demonstra que se trata de um tópico de interesse nacional.

Reflexo disso é que, inclusive, o tema tem aparecido em algumas decisões esparsas, notadamente em ações coletivas e arbitragens empresariais, nas quais o financiamento por terceiros tem sido aceito, desde que respeitados os princípios da boa-fé, transparência e ausência de controle indevido dos funders sobre a condução do litígio[6][7].

Decisões de tribunais estaduais também vêm reconhecendo a prática e analisando suas implicações. Como exemplo, destaca-se a recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que discute a validade do financiamento de demandas, ressaltando a necessidade de observância dos limites contratuais e da transparência, sob pena de configurar fraude à execução[8].

Nesse contexto, em que pese a ausência de regulamentação específica, o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de instrumentos que podem, com alguma adaptação, permitir a atuação dos funders em território nacional. É o caso da cessão de crédito (arts. 286 a 298 do Código Civil[9]), pela qual o financiado pode ceder parte do crédito eventualmente obtido ao final da demanda ao terceiro financiador. Esse tipo de operação é lícita e pode ser utilizada em diversos contextos, sendo plenamente compatível com a lógica do TPF.

Outro instrumento que pode ser utilizado para o financiamento é a assistência simples, prevista no artigo 119 do Código de Processo Civil[10]. O funder poderia atuar como assistente da parte financiada, caso demonstre interesse jurídico no desfecho da causa, o que ocorre justamente quando há cessão parcial do crédito em litígio. Na Lei de Arbitragem[11], embora não haja previsão expressa sobre intervenção de terceiros, a autonomia das partes permite a estruturação do procedimento para incluir tais figuras, se as partes assim entenderem pertinente.

Uma alternativa que vem ganhando espaço nas discussões sobre TPF no Brasil é o uso dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs). Nessa estrutura, investidores se tornam cotistas e aplicam recursos em créditos gerados por disputas judiciais ou arbitrais. Apesar de a legislação brasileira ainda não tratar diretamente desse tipo de operação, ela se encaixa bem na lógica do mercado de capitais e exigiria apenas ajustes pontuais na regulamentação. O avanço de fundos internacionais com atuação no país e o amadurecimento do mercado jurídico nacional ajudam a reforçar essa tendência.

O TPF não é apenas uma ferramenta de acesso à justiça, mas também um fenômeno que levanta algumas discussões éticas e estratégicas relevantes. Entre os temas mais debatidos estão: a transparência na relação entre financiado e financiador, a eventual ingerência do funder na condução do processo e a necessidade de disclosure dessa relação perante o tribunal arbitral ou as partes adversas.

Nesse sentido, instituições arbitrais internacionais vêm incluindo disposições específicas sobre o tema em seus regulamentos. A International Chamber of Commerce (ICC), por exemplo, recomenda expressamente a revelação da existência de financiamento por terceiros, com o objetivo de evitar conflitos de interesse dos árbitros[12]. No Brasil, algumas câmaras já começam a discutir o tema, mas o movimento ainda é incipiente.

Referida postura das câmaras arbitrais encontra respaldo nas diretrizes da IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration (IBA) que, a partir de 2020, passaram a prever expressamente a necessidade de revelação da existência de financiadores terceiros, como forma de mitigar potenciais conflitos de interesse.

A CAM-CCBC, por sua vez, reconhece, desde 2016, a possibilidade de financiamento por terceiros na arbitragem, recomendando que as partes informem a existência desse financiamento ao centro de arbitragem para evitar conflitos de interesse e garantir a transparência do procedimento[13]. Além disso, a instituição reforça a importância de divulgar a presença de financiadores terceiros, especialmente diante do potencial de conflito de interesses, alinhando-se às diretrizes internacionais, como as da IBA, que também recomendam a revelação dessa relação. Assim, o posicionamento da CAM-CCBC acompanha a tendência mundial de maior transparência e regulamentação sobre o tema, reforçando a coerência com as práticas internacionais discutidas ao longo deste artigo.

Em síntese, o TPF não deve ser encarado como uma ameaça à independência nos procedimentos arbitrais ou como prática especulativa. Pelo contrário: representa uma alternativa legítima e sofisticada para promover o acesso à arbitragem em cenários de restrição orçamentária – realidade que se tornou ainda mais presente no contexto pós-pandemia e diante da lenta recuperação econômica de determinados setores empresariais, especialmente no Brasil.

Com estrutura jurídica viável, crescente maturidade do mercado e um ecossistema arbitral cada vez mais profissionalizado, o Brasil reúne as condições necessárias para desenvolver um ambiente regulatório sólido e seguro para a atuação dos Third Party Funders. A construção desse cenário, no entanto, exige o engajamento da comunidade jurídica, inclusive da nova geração de profissionais da arbitragem, para discutir o tema com responsabilidade e olhar estratégico.

 

 

[1] Marina Silva Caramuru é advogada com atuação em contencioso estratégico e arbitragem, reconhecida pelo ranking The Legal 500. Possui MBA em Direito Empresarial pela FGV (GVLaw) e é autora de artigos sobre métodos adequados de solução de conflitos e inovação jurídica. Atuou como árbitra na V Competição de Arbitragem da CAMAGRO.

[2] CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem Comercial Internacional e Acesso à Justiça: o Novo Paradigma do Third Party Funding. Tese de Doutorado – PUC-SP, 2014.

[3] Para Napoleão Casado Filho, o “third-party funding consiste, em resumo, no cenário em que um terceiro provê os recursos necessário para que uma das partes participe de um procedimento arbitral. Como fonte de estímulo ao desenvolvimento de novos procedimentos arbitrais, o instituto também apresenta problemáticas que serão objetivamente discutidas neste trabalho, envolvendo a independência do tribunal arbitral, bem como os deveres e poderes inerentes das partes e dos árbitros” (in: Third-party funding, Tomo Direito Internacional, Edição 1, Fevereiro de 2022, disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/491/edicao-1/third-party-funding#:~:text=O%20third%2Dparty%20funding%20consiste,das%20partes%20e%20dos%20%C3%A1rbitros., acesso em: 24/06/2025).

[4] HENRIQUES, Gorjão Duarte. “Third Party Funding ou o Financiamento de Litígios por Terceiros em Portugal”. Revista da Ordem dos Advogados de Portugal, n. 3-4, p. 573-624, 2015.

[5] LYON, Jason. Revolution in Progress: Third Party Funding of American Litigation. UCLA Law Review, n. 58, p. 571, 2010-2011.

[6] A título de exemplo, vide decisão em arbitragem internacional reconhece que declarações sobre riscos do financiamento por terceiros, feitas em contexto específico, não comprometem a imparcialidade do árbitro, reforçando a ideia de que o financiamento por terceiros pode ser aceito sob condições de transparência e boa-fé: “In proceedings conducted under the legacy provisions of the USMCA, NAFTA Chapter 11, and the ICSID Convention, the claimant challenged an arbitrator based on statements regarding the risks of third-party funding that the arbitrator made in another investment treaty case.  The co-arbitrators rejected the challenge because the statements addressed a general topic, were made in the context of a specific case, and also recognized potential benefit of third-party funding.  Under the circumstances, the statements did not give rise to justifiable doubts regarding the arbitrator’s independence and impartiality with respect to the parties or the particular dispute” (SIlver Bull Resources, Inc. v. Mexico – Decision on the Claimant’s Proposal to Disqualify Prof. Philippe Sands KC, ICSID Case No. ARB/23/24, 21 October 2024).

[7] Outro exemplo é que, em uma decisão arbitral recente, o Tribunal ordenou a produção de documentos relacionados ao financiamento por terceiros, destacando a importância da transparência nesse tipo de arranjo para garantir a integridade do processo arbitral (Procedural Order No. 4, ICSID Case No. ARB/22/23, 14 Dec 2023).

[8] “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DE TERCEIRO INVESTIDOR – FINANCIAMENTO DE DEMANDA ARBITRAL […] CESSÃO DE CRÉDITOS FUTUROS – OPONIBILIDADE DE EXECUÇÃO JUDICIAL PRETÉRITA – INEFICÁCIA SUPERVENIENTE – Ainda que não haja expressa disposição legal sobre a disciplina do terceiro investidor (litigation finance ou third-party funding), sua prática é reconhecida no mercado (tipicidade social), o que obriga os contratantes à observância dos limites contratuais e seus efeitos, inclusive a oponibilidade perante terceiros, uma vez que o objeto ou bem da cessão de crédito pode ser futuro, mas a cessão, além de conhecida e atual, é superveniente à execução judicial. […] (TJMG; Apelação Cível 5097018-55.2022.8.13.0024; Relator(a): Des.(a) Marcelo de Oliveira Milagres; Órgão Julgador: Câmaras Cíveis / 18ª Câmara Cível; Data da Decisão: 13/08/2024; Data de Publicação: 14/08/2024)

[9] Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406/2002.

[10] Código de Processo Civil. Lei nº 13.105/2015.

[11] Lei da Arbitragem. Lei nº 9.307/1996, com alterações da Lei nº 13.129/2015.

[12] International Chamber of Commerce (ICC). Note to Parties and Arbitral Tribunals on the Conduct of the Arbitration under the ICC Rules of Arbitration, 2021.

[13] RA 18/2016, disponível em: https://www.ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/resolucao-de-disputas/resolucoes-administrativas/ra-18-2016-financiamento-de-terceiros-em-arbitragens-cam-ccbc/ (acesso em 24/06/2025).

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