A CISG e os Limites da Autonomia Contratual: Aprendizados do Caso Kumpers Composites Gmbh v. TPI Composites Inc. Aplicáveis à Arbitragem Internacional
A CISG E OS LIMITES DA AUTONOMIA CONTRATUAL: APRENDIZADOS DO CASO KUMPERS COMPOSITES Gmbh v. TPI COMPOSITES Inc. APLICÁVEIS À ARBITRAGEM INTERNACIONAL
Fabiola Melo Miguelete[1]
Quando se trata de comércio internacional, é de suma importância que as empresas estejam preparadas para atuar nesse cenário tão complexo.
Um contrato internacional eficaz é o início de um processo de importação ou exportação – seja de produtos ou serviços – bem-sucedido. Isso porque, em um ambiente marcado, notadamente, pela multiplicidade de jurisdições e legislações, a escolha do foro podendo, por exemplo, ser eleito um foro arbitral – e da legislação aplicável é altamente recomendável, sem excluir outras cláusulas igualmente importantes para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade às partes, tais como: cláusulas de força maior, hardhsip, Incoterms e garantias contratuais.
Assim, a escolha da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) pode ser uma boa alternativa para as partes de um contrato internacional,quando eleita como legislação aplicável, nos casos que envolvem a venda de produtos entre empresas privadas situadas em diferentes Estados Contratantes, excluindo-se a aplicação da CISG à venda ao consumidor final e de certos tipos de bens, por força do disposto em seu artigo 2.[2]
Apesar de a CISG ser amplamente aceita no cenário internacional — contando, atualmente, com 97 Estados contratantes, incluindo o Brasil —, o que contribui para a redução de riscos e o aumento da segurança nas transações comerciais internacionais, a Convenção, como qualquer instrumento normativo, não regula exaustivamente todos os aspectos envolvidos em uma relação comercial. Alguns temas foram deixados fora de seu escopo, como a forma do contrato[3][4], já que a CISG permite liberdade de forma (salvo disposição em contrário por parte dos Estados contratantes), além da validade do contrato e dos efeitos sobre a propriedade dos bens. Por isso, é essencial que as partes estejam atentas a essas lacunas e, sempre que possível, estabeleçam princípios ou regras que orientem a interpretação do contrato em situações não abrangidas diretamente pela Convenção.É importante ressaltar que, em seu artigo 7(2)[5], a CISG dispõe que as matérias não expressamente reguladas em seu texto normativo serão solucionadas de acordo com os princípios gerais que a embasam ou, na falta destes, de acordo com a lei aplicável por força das regras de direito internacional privado[6]. Foi o que aconteceu no caso Kumpers v. TPI, que envolveu uma empresa alemã especializada em produtos têxteis semiacabados para aplicação em estruturas de compósitos e uma empresa americana fabricante de pás eólicas compostas.
As partes firmaram contratos para o fornecimento de tecidos de fibra de vidro unidirecional (UD600) para uso em pás de turbinas eólicas. A relação era regida por um contrato-mestre em 20 de maio de 202 e contratos de fornecimento entre janeiro de 2022 e março de 2023. Tanto no contrato-mestre quanto no contrato de fornecimento, havia a previsão de possibilidade de rescisão por conveniência, bem como a escolha da lei do Estado do Arizona como legislação aplicável ao instrumento e, também, uma cláusula de fusão, na qual estabelecia-se que os contratos escritos correspondiam à totalidade do acordo entre as partes.
Entretanto, os contratos eram omissos em relação à aplicação da CISG. No entanto, a partir de 2022, as partes começaram a divergir quanto ao preço e seus possíveis ajustes, trocando notificações por e-mail, nas quais, de um lado, mencionava-se a possibilidade de rescisão por conveniência e, de outro, a suspensão do fornecimento. A tensão aumentou até que, de fato, ocorreu a rescisão por conveniência.
Inconformada com a situação, a Kumpers ingressou com demanda judicial perante no Tribunal do Arizona para o fim de questionar:
- A aplicabilidade da CISG aos contratos celebrados entre as partes; e
- A necessidade de atender aos requisitos de “boa-fé contratual” e “mudança nas condições” para a ocorrência da rescisão por conveniência.
Em relação à primeira questão jurídica, a posição do Tribunal do Arizona foi no sentido de reconhecer a aplicabilidade da CISG aos contratos, com o fundamento de que a simples omissão quanto à sua aplicabilidade não era suficiente para excluir a incidência da norma. Assim, seria necessário que as partes tivessem expressamente pactuado sua exclusão[7].
Já em relação ao segundo questionamento, o Tribunal entendeu que a CISG não previa a modalidade de rescisão ocorrida, tratando-se de rescisão por conveniência prevista contratualmente, nem fornecia orientações claras nesse sentido. Concluiu, portanto, que a lei do Estado do Arizona seria a legislação aplicável para a resolução desse impasse, uma vez que preenchia as lacunas deixadas pela convenção[8].[9]
Este caso reforça a necessidade de as partes, em contratos internacionais, excluírem expressamente a CISG caso não desejem sua aplicação, bem como estabelecerem princípios ou regras claras que orientem a interpretação das lacunas da convenção, garantindo maior previsibilidade. Essa atenção redobrada é essencial, mesmo em contratos em que as partes optam por submeter eventuais controvérsias à arbitragem internacional. Contratos internacionais, ainda que prevejam a arbitragem como forma de solução de controvérsias, exigem precisão na definição do regime jurídico aplicável, a fim de assegurar segurança às partes. A integração entre cláusula compromissória e disciplina material é, portanto, elemento-chave para evitar disputas desnecessárias e garantir a efetividade do pacto negocial.
Outro ponto de atenção é que a aplicação automática da CISG, mesmo quando as partes escolhem uma legislação distinta sem excluí-la expressamente, revela um limite material à autonomia contratual: a vontade das partes só é plenamente respeitada quando formalizada nos moldes exigidos pela convenção.
[1] Advogada regularmente inscrita na OAB/RJ, Pós-graduanda em Direito Internacional Privado e Contencioso Estratégico pela PUC MG e Pesquisadora do Núcleo Estudos e Pesquisa em Direito Internacional no eixo Direito Internacional Privado do NEPEDI UERJ. Autora de artigos sobre Direito Internacional, Propriedade Intelectual e Direito Empresarial.
[2] No caso aqui discutido, embora as partes não tenham escolhido expressamente a CISG como legislação aplicável ao contrato, a Convenção foi aplicada automaticamente, pois as partes estavam estabelecidas em Estados contratantes distintos. Além disto, na ausência de cláusula expressa excluindo sua aplicação, conforme previsto no artigo 6º da CISG a Convenção vigora como regime jurídico aplicável ao contrato, ainda que de forma subsidiária.
[3] Artigo 11: Artigo 11 O contrato de compra e venda não tem de ser concluído por escrito nem de constar de documento escrito e não está sujeito a nenhum outro requisito de forma. O contrato pode ser provado por qualquer meio, incluindo a prova testemunhal.
[4] Artigo 4: A presente Convenção regula exclusivamente a formação do contrato de compra e venda e os direitos e obrigações que esse contrato faz nascer entre o vendedor e o comprador. Salvo disposição expressa em contrário da presente Convenção, esta não diz respeito, em particular: (a) à validade do contrato ou de qualquer das suas cláusulas, bem como à validade dos usos; (b) aos efeitos que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas.
[5] Artigo 7(2) As questões respeitantes às matérias reguladas pela presente Convenção e que não são expressamente resolvidas por ela serão decididas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, na falta destes princípios, de acordo com a lei aplicável em virtude das regras de direito internacional privado.
[6] NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG). Viena, 1980. Disponível em: United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (Vienna, 1980) (CISG) | United Nations Commission On International Trade Law. Acesso em: 04 de abril de 2025.
[7] According to Kümpers, to prevent the CISG from governing, the parties needed to have included a provision unequivocally rejecting the application of CISG … Therefore, even if ‘Arizona law’ governs the Agreements, the law of Arizona is the CISG.”
[8]KÜMPERS COMPOSITES GmbH & Co KG v. TPI Composites Inc. Tribunal Distrital dos Estados Unidos para o Distrito do Arizona, caso nº 2:23-cv-0024-SMB, decisão de 25 de fevereiro de 2025. Acesso em: 29 de março de 2025.
[9] “The CISG does not specifically address termination for convenience clauses, nor does it provide clear guidance on the matter. Further, the parties agree that Arizona law fills the gaps left by the CISG … Therefore, the Court finds that TPI retained the right to terminate the Supplier Agreement for convenience”.