Comentários ao Conflito de Competência n. 197.434/SP: declaração de competência de juízo estranho ao conflito

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Comentários ao Conflito de Competência n. 197.434/SP: declaração de competência de juízo estranho ao conflito

 

Davi Ferreira Avelino Santana[1]

 

  1. Background do julgamento do Conflito de Competência

 

Este breve artigo tem por escopo analisar o acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n. 197.434/SP, cujo cerne residiu em delimitar, em contexto de colisão entre ordens jurisdicionais, a atribuição competente para conhecer de pleito de produção antecipada de provas formalizado em contrato dotado de cláusula compromissória. Ante o impasse inicial entre dois juízos estatais, concluiu-se pela competência exclusiva da jurisdição arbitral para o exame do caso.

 

De forma ampla, a controvérsia envolvia a produção antecipada de provas relacionada à operação de M&A que resultou na venda da empresa Kabum Comércio Eletrônico S.A. para a Magazine Luiza S.A., em contexto desvinculado de urgência. O Juízo da 2ª Vara Cível de Limeira/SP declarou-se incompetente, alegando vínculo trabalhista instaurado com a integração dos autores ao quadro funcional da adquirente, e remeteu o caso ao Juízo da 2ª Vara do Trabalho, que também se considerou incompetente, por entender que o litígio era de natureza cível, relacionado à venda de ações.

2.      Reflexões sobre a declaração de competência de terceiro juízo

 

De acordo com o parágrafo único do art. 66 do Código de Processo Civil, “o juiz que não acolher a competência declinada deverá suscitar o conflito”, assim feito pelo Juízo Trabalhista inaugurando o conflito negativo de competência que, conforme previsto no inciso II do referido artigo, ocorre quando “dois ou mais juízes se consideram incompetentes, atribuindo um ao outro a competência” para apreciar a matéria.

 

Suscitadas as oposições de competências, como efeito do julgamento “a decisão do conflito de competência tem de declarar o juízo competente e determinar a remessa dos autos ao mesmo para que tenha curso o procedimento. Nada obsta que o tribunal decida pela competência de um terceiro juízo, diverso dos juízos conflitantes[2]. No mesmo sentido, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Jr. corroboram essa perspectiva ao afirmarem que “[é] possível que o tribunal decida ser competente um terceiro juízo, distinto dos conflitantes[3].

 

Tendo em vista que o objeto do ato decisório é o desfazimento do conflito-situação, todos os elementos disponíveis para decidi-lo devem ser considerados. E considerando também que “[…] o conflito-remédio é o incidente elaborado legislativamente para declarar, com definitividade, o órgão jurisdicional competente para processar e julgar o processo (ou os processos) em situação de conflito, não é excluída a possibilidade de o tribunal declarar a competência de um órgão diverso dos conflitados[4].

 

O dever do STJ ao decidir um conflito de competência está delineado no art. 957, caput, do CPC[5], que estabelece a obrigação de declarar qual o juízo competente. A interpretação chave para o artigo em comento é que este dever se aperfeiçoa mediante a indicação do juízo competente para a apreciar o caso, independentemente de ser o juízo suscitante ou o suscitado.

 

A literalidade do dispositivo, não é limitada, portanto, não é possível concluir que a escolha deverá ocorrer apenas entre os dois juízos envolvidos, conferindo-se ao STJ liberdade para apontar o juízo que efetivamente detenha a competência para solucionar a controvérsia. Portanto, inexiste vedação legal à declaração de terceiro juízo, ainda que este não tenha figurado como parte no conflito originário.

 

Dessa forma, a escolha de um terceiro juízo não implica inovação contrária ao ordenamento jurídico, mas sim uma interpretação teleológica que busca a racionalização da prestação jurisdicional a fim de “dar solução a todo conflito posto em juízo[6], pois, “no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o non liquet diante de uma causa incômoda ou complexa[7]. O que não poderia existir seria a declaração de uma semi-competência apenas para que o impasse ficasse entre os juízos suscitante e suscitado do conflito.

 

Embora uma novidade no contexto de conflitos de competência que envolvem convenção de arbitragem, este entendimento não é inédito na trajetória jurisprudencial do STJ, que já havia declarado a competência de terceiros juízos em conflitos estatais[8]. Para tanto, o “reconhecimento da competência de Juízo estranho ao conflito suscitado é perfeitamente possível ante a ausência de vedação legal, sendo procedimento adotado por esta Corte Superior em muitas oportunidades, garantindo-se, assim, a celeridade na tramitação do processo[9]. A verdadeira inovação reside na extensão dessa possibilidade à indicação de juízo arbitral.

 

A lógica primária em se declarar competente um terceiro juízo, não participante do conflito inicial, advém “em razão da economia processual e em respeito às partes que exigem solução pronta para a questão[10]. A exigência de solução faz com que o “órgão estatal, judiciário, que decide o conflito, [tenha] de examinar, não qual dos dois juízes é o competente, mas qual o juiz competente, e o princípio inquisitivo entra em cena, em vez do princípio dispositivo[11]. Ou seja, abre-se mão de estar circunscrito ao quanto alegado pelas partes (princípio dispositivo), de que o conflito é entre dois juízos, e parte-se à atuação de ofício pelo julgador para buscar uma solução fora do alegado (princípio inquisitivo), que é o terceiro juízo.

 

Já a lógica subjacente está ligada ao reconhecimento da autonomia da vontade das partes que, ao firmarem convenção arbitral, optam por submeter toda e qualquer disputa relativa ao contrato à arbitragem, afastando a jurisdição estatal. Portanto, quando o STJ afirma que a competência arbitral prevalece, ainda que não tenha sido objeto da lide inicial, está corroborando a tese de que o núcleo central do debate não reside na forma, mas sim na substância do compromisso firmado.

 

  1. Considerações finais

 

A primazia da arbitragem como método de resolução de litígios, inclusive aqueles relacionados à instrução probatória, passa pela compreensão de que a provocação judicial para a produção de provas sem urgência violaria a lógica da arbitragem como espaço jurisdicional e autossuficiente[12], pois “não há previsão legal para que se permita a produção antecipada de prova perante o Poder Judiciário se não há perigo de dano[13][14]. Assim, sequer há de se cogitar conflito de competência entre juízos estatais para esta produção. Ambos já eram incompetentes na origem, quando o verdadeiro juízo era estranho à lide.

 

Ao fincar raízes no princípio da autonomia da vontade, o julgamento do Conflito de Competência fortalece a atual jurisprudência do STJ em prol da arbitragem enquanto meio de resolução de controvérsias, e permite que a reflexão sistêmica que emerge desse julgado assegure a segurança jurídica das interações entre o Poder Judiciário e os tribunais arbitrais. Isso porque reafirma-se que a lógica procedimental da arbitragem deve prevalecer quando expressamente acordada pelas partes.

 

 

[1] Graduando em Direito na Universidade Católica do Salvador com intercâmbios na Universidade do Porto e na Pontificia Università Lateranense di Roma. Student Member do Chartered Institute of Arbitrators e membro do Young International Council for Commercial Arbitration. Diretor acadêmico do Comitê de Jovens Arbitralistas do CBMA e embaixador da Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 10ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 1121.

[3] NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 20ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 1910.

[4] ALBUQUERQUE, Raul Cézar de. Do Conflito de Competência. Revista de Processo, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, v. 354, p. 57-91, ago. 2024.

[5] “Art. 957. Ao decidir o conflito, o tribunal declarará qual o juízo competente, pronunciando-se também sobre a validade dos atos do juízo incompetente”.

[6] DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos. Teoria Geral do Processo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 18.

[7] Ibidem, p. 248.

[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Conflito de Competência n. 89.387/MT, Relator: Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção, Julgado em: 9 abr. 2008, Publicado em: 18 abr. 2008; Idem. Conflito de Competência. n. 80.266/PR, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, Julgado em: 24 out. 2007, Publicado em: 12 fev. 2008.

[9] Idem. Conflito de Competência n. 120.556/CE, Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, Julgado em: 9 out. 2013, Publicado em: 17 out. 2013.

[10] NERY; NERY JÚNIOR, op. cit., p. 269.

[11] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 46 a 153. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 341.

[12] De acordo com o art. 22-B da Lei de Arbitragem, “estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros” e, uma vez “[i]nstaurado o procedimento arbitral, não se admite o fracionamento da jurisdição, cabendo ao juízo arbitral resolver todas as questões que lhe forem apresentadas para a solução do litígio”, inclusive o exame dos elementos probatórios (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Conflito de Competência n. 197.434/SP, Relator: Ministro Moura Ribeiro, Segunda Seção, Julgado em: 5 out. 2023, Publicado em: 10 out. 2023).

[13] MARQUES, Lilian Patrus. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e convenção de arbitragem. Jota, 08 jul. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/antecipacao-da-prova-sem-o-requisito-da-urgencia-e-convencao-de-arbitragem. Acesso em: 31 mar. 2025.

[14] Sobre produção antecipada de provas sem urgência e o efeito negativo da cláusula compromissória, ver o “Caso Renova” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 2.023.615/SP, Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, Julgado em: 14 mar. 2023, Publicado em: 20 mar. 2023). Para comentários a este caso, ver por todos: ARSUFFI, Arthur; TAKEISHI, Guilherme; MENEZES, Isabella. Notas sobre produção antecipada da prova e arbitragem: uma visão crítica do recente posicionamento do STJ. Revista de Processo, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, v. 345, p. 443-472, nov. 2023.

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